segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O CAMINHO DA PALAVRA [2]






3. A experiência pascal e a Tradição Viva

A Ressurreição de Jesus aconteceu na vida dos seus discípulos como experiência pascal. Nos dias que se seguiram à crucifixão e morte do Mestre começaram a fazer uma experiência interior fortíssima de Presença. Graças à sua vivência histórica com Jesus, deram-se conta que era ele mesmo, reconheceram-no: “é o Senhor!” (Jo 28,8). A morte não o engolira, Deus ressuscitara-o! E ali estava ele, comunicando-se Vivo e Presente: era o mesmo Jesus de sempre, e continuava a realizar as mesmas acções que manifestara na sua vida pública.

Além disso, o ressuscitado também se revelava “no meio deles”. Isso significa que os discípulos formavam uma comunidade memorial na medida em que, unidos em comunhão fraterna pela causa do Mestre e fazendo o memorial das suas palavras e gestos, experimentavam-no claramente Com-Vivente, solidário, entre eles, de uma forma nova e ainda mais intensa.

Por fim, a experiência pascal que fizeram foi também confirmada pela mediação da Tradição Viva de Israel. Lendo retrospectivamente a sua história com Jesus e a história do seu povo, os discípulos chegaram à conclusão que aquela morte não era um absurdo. Pelo contrário, a lógica de Deus actuar ao longo das gerações fora manifestada em plenitude no Mestre de Nazaré. Por isso mesmo Deus o ressuscitou, assumiu, glorificou e o constituiu Messias. Agora compreendem isto: Jesus de Nazaré é o coração da Tradição Viva e da Escritura: Nele se cumpriram todas as promessas de Deus a Israel. Nele se inaugurou o Projecto Salvador de Deus para o seu Povo, anunciado desde o tempo dos patriarcas e profetas.

Os próprios Evangelhos apresentam-nos a clara sintonia entre a vida de Jesus e a Tradição:

«E começando por Moisés e continuando por todos os profetas, explicou-lhes o que se referia a ele em toda a Escritura.» (Lc 24,27)

«Não nos ardia o coração enquanto nos falava pelo caminho e nos explicava a Escritura?» (Lc 24,32)

«Hoje, em vossa presença cumpriu-se esta Escritura» (Lc 4,21)

«Quando ressuscitou da morte, os discípulos recordaram o que ele havia dito, e creram na Escritura e nas palavras de Jesus» (Jo 2,22)


S. Paulo foi ainda mais longe. Apesar de nunca ter tido uma vivência histórica com Jesus, isso não foi impedimento para fazer a experiência pascal. O Ressuscitado revelou-se a Paulo pelas mediações da comunidade memorial – primeiro a de Damasco e depois a de Antioquia –, e da Tradição Viva que conhecia tão bem a partir da Escritura. E foi especialmente esse conhecimento bíblico que constituiu para Paulo a porta principal de entrada para a Boa Notícia da Ressurreição.

Agora, relendo a Tradição à luz da ressurreição, Paulo abandona o antigo farisaísmo e afirma que em Jesus aconteceu algo maior do que a sua própria vida. Nele aconteceu algo que diz respeito a toda a história e não somente aos judeus. Pela Fé, toda a humanidade pode receber Nele a Vida de Deus. Todos os ritos antigos e a Lei judaica tornaram-se obsoletos porque Nele se constituiu uma Nova Aliança.


4. Da Tradição Viva à Escritura

Com o tempo a Tradição foi passando a ser redigida. A Escritura é a gravação desse Testemunho Vivo de Deus com o seu Povo em papiros e rolos. E como a Tradição foi sempre dinâmica e histórica, a Escritura foi sendo alargada, acrescentada, e retocada ao longo dos séculos. Foi assim que nasceu um conjunto de livros, escritos antes e depois de Jesus, a que hoje denominamos “bíblia”.

A bíblia não é propriamente um livro, mas uma biblioteca de 73 livros divididos em duas secções: 46 livros do Antigo Testamento e 27 livros do Novo Testamento. Como já vimos, Jesus está no seu centro. Ele é o ponto de chegada da Aliança do Sinai (Antigo Testamento), agora definitivamente renovada na sua ressurreição pelo Dom do Espírito que realiza a adopção filial da humanidade (Novo Testamento).

A bíblia não é Revelação de Deus no estado puro. Ela reúne géneros literários de vários autores, com sensibilidades e visões do mundo distintas. Se até repararmos bem, a bíblia nem sempre apresenta uma linguagem edificante; mas vem carregada de tentativas, ambiguidades, desilusões, fracassos, e limitações… tudo porque ela não é um ditado de Deus, mas somente inspirada. Nela vislumbramos um Deus que não tem pudor em dizer-se na nossa humanidade imperfeita e ainda em construção. Nela está patente a Revelação progressiva do Rosto de Deus em contextos delimitados por uma determinada cultura, época e circunstância. Então, como interpretá-la? Quais os critérios? Como re-descobrir nela o Deus de Jesus sem cairmos no risco da beatice ou da indiferença?



Com efeito, a bíblia só pode ser Revelação na medida que for uma mediação privilegiada do Deus-Palavra, do seu Amor, e do seu agir em nós. E isso acontece numa caminhada de Fé em comunidade memorial. Esse é o ponto de partida para começamos do princípio. Do princípio da História de Deus com este Povo. E se nos sintonizarmos nessas condições também faremos a mesma descoberta, a mesma experiência teologal de tantos homens e mulheres que nela intervieram. Também acontecerá connosco o Encontro provocado pela Escuta, a experiência pascal dos discípulos de Emaús com o coração a arder pela explicação das Escrituras, que continuam a reconhecer a Presença do Ressuscitado, que descobrem um Deus sempre novo, sempre mais belo e encantador.






A História de Deus-Connosco não terminou em Jesus.
Tu, eu, e nós somos convocados a viver um Projecto de Salvação
simultaneamente como destinatários e protagonistas.
Tu, eu e nós podemos ser Testemunho e Tradição Viva.
Tu, eu, e nós estamos talhados a ser Palavra, resposta,
e acção Salvadora de Deus no seio da humanidade.
Tu, eu e nós, a Caminho…