sábado, 27 de junho de 2009

Dizer Deus dizendo o homem [2]






« A antiguidade viveu sob o sinal da fatalidade (Factum, moira [destino], …). Ao fim, tomadas as coisas ao pé da letra, não há nada a fazer. O próprio Zeus [o maior e mais poderoso dos deuses gregos] viu-se submetido a uma espécie de Lei que se impõe e contra a qual ele nada podia.



Certamente, a Grécia possuía a noção de liberdade e inclusive, foi a que iniciou o longo e difícil caminho da liberdade (…). Mas depressa esta liberdade é derrubada e vencida. Sem dúvida isto ocorreu assim com os gregos pois, para eles, quase tudo se joga entre o azar e a necessidade. Deste modo a liberdade se vê aprisionada por duas forças maiores. Não há salvação.


Parece claro que foi precisamente pela ideia da salvação e, de modo particular e paradoxalmente, pela ideia de pecado, que o cristianismo criou esta brecha de liberdade e da libertação da fatalidade da história.


E o que significa o pecado? Que o mal, ao menos por uma parte - uma vez que somos também vítimas de adversidades que não implicam a nossa responsabilidade - depende do homem. E isso significa que ele é responsável. Além disso, posto que se trata definitivamente de um acidente histórico e não de um produto da natureza, o homem, em princípio, pode não cometê-lo ou não voltar a cometê-lo, em nenhum caso se trata duma fatalidade.


Portanto, o mal não é algo monumental, fora de série, impossível de deter. O homem não está submetido como se fosse escravo do destino.
O pecado é um mal responsável, atribuível ao domínio pessoal, que poderia não ter sido cometido.


Isto é dizer que o pecado, em certo sentido, não é mais que um pecado e o homem não se define irremediavelmente pelo mal. O cristianismo leva-nos a dizer ao rapaz que roubou: efectivamente, tu roubaste; mas tu não és um ladrão. (…). Sim, tu drogaste-te; mas não és um drogado. O criminoso não tem que ser reduzido ao crime cometido.


Sabemos que Caim, no Génesis, recebe um sinal na sua fronte; mas esse sinal não lhe é posto para desqualificá-lo para sempre; pelo contrário, Deus o imprime para recordá-lo que ele permanece protegido e amado por Deus (…).


Interpretamos a resignação perante o destino como uma sabedoria tolerável. É precisamente a ideia de salvação que chega em contracorrente desta “sábia resignação” ou deste desastroso submetimento ao destino.
Que significa, com efeito, a ideia de salvação senão precisamente que nada é irremediável; que tudo pode ser sempre repetido, reiniciado, voltar a partir do zero; que nada se perde definitivamente, que tudo pode ser salvo?


(…) Ao falar, ao pensar e ao actuar deste modo, o cristianismo desfatalizou positivamente a história do homem. Inclusivé no que diz respeito não só ao pecado, mas também à adversidade (injustiças de nascimento, etc.). Na antiguidade esse mal que cai sobre o homem é atribuído de modo irremediável ao destino, a forças das quais ninguém se podia libertar.


A ideia de salvação implica que as coisas não são necessariamente como aparentam, nem são destinadas a permanecer tal como estão.


“O que o nascimento fez de vocês pode ser apagado”. Com outras palavras, o mal pode ser abatido e derrotado. Pode ser abatido e derrotado nos sentidos da palavra “poder”: tem-se o direito, e não é um sacrilégio, nem um atentado contra os deuses, mas antes um confronto com o mal; e se tem a capacidade: há uma força em nós capaz de confrontar-se com o mal e destruí-lo. Não há nenhuma culpabilidade em querer abater e derrotar o mal, muito pelo contrário;
encontramo-nos incluídos e associados à vontade e ao poder de Deus.


(…) Seguramente Deus não suprimiu o mal, mas antes desfez a sua tirania: o mal não deve exercer sobre nós nenhum fascínio, nenhuma coacção, nenhum medo, nada que nos possa impedir de atacá-lo porque o consideramos um poder intolerável.
»






Adolphe Gesché, "Jesucristu", p.49-51

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Dizer Deus dizendo o homem [1]


Bem-vindos! Já há uns tempos que não aparecia por cá. Os exames também me têm ocupado um pouco. Mas hoje gostava de partilhar alguns fragmentos de um livro que me tem cativado. O autor é Adolphe Gesché, um teólogo belga que escreveu várias sínteses e reflexões sobre temas fundamentais da fé. Assim vale a pena fazer teologia, aqui deixo o primeiro de alguns posts...






« Para falar do homem, a Escritura possui uma problemática muito especial. Consiste em falar não de maneira directa, senão observando-o na sua relação com Deus. Porque a Escritura na sua totalidade, não é um discurso sobre Deus, nem um discurso sobre o homem, mas um discurso sobre a relação entre ambos (criação, aliança, encarnação). Assim é como ela fala do homem. A sua única preocupação é contar esta relação entre Deus e o homem e, desde aí, extrair seu ponto de vista sobre o homem(…).


Tanto Deus como o homem são qualificados não a partir do que são em si mesmos, senão a partir do que são um para o outro. Tu não saberás quem eu sou, diz Deus (“Eu sou aquele que sou”: Ex 3,14); tu saberás somente quem sou para ti (“Eu estou contigo”: Ex 3,12). A partir daí saberás quem eu sou e quem tu és (…).


Encontramo-nos exactamente aqui perante o conteúdo essencial da fé cristã, a encarnação, que representa a realização paradigmática da relação entre Deus e o homem. Em Jesus o crente descobre, lê e decifra precisamente a mais estreita relação que existe, a relação por excelência entre Deus e o homem. Aí decifra também o seu ser (…).


Com efeito, é este Deus louco e incompreensível de Jesus (cf. 1Cor 1,18-31 e 2,1-16), fonte de uma sabedoria completamente nova, que desconcerta os sábios e ilumina os pequenos (cf. Mt 11,25), ele é que nos vai revelar, deste modo, a verdadeira compreensão do homem. Cristo introduz a incompreensibilidade de Deus como chave para a compreensão do homem. Efectivamente Deus é amor, o qual, quer dizer loucura. Um atributo indecifrável, incompreensível, dado que é “irracional” (o amor não é razoável). Mas será esta dimensão do indecifrável do Amor que nos permitirá decifrar o homem.


Foi, sem dúvida, a partir deste Deus louco e incompreensível de Jesus Cristo como o cristianismo foi capaz de descobrir e proclamar a grandeza dos pobres e abandonados. A este propósito o Evangelho descobriu o pobre, e descobriu-o como homem. (…) A Grécia e o humanismo não falaram, nem foram capazes de falar, do pobre, do homem caído, do excluído, do homem que, por ser economicamente inútil, fisicamente destroçado, afectivamente insignificante ou socialmente marginalizado, devia ser deitado fora da sociedade; antes exigiam sabedoria e bom sentido revestidos de humanismo e clarividência a quem queria reger a cidade com ordem e eficácia.


As bem-aventuranças, o Magnificat, o vaso de água dado ao mais pequeno, o respeito absoluto pela criança, o assombro de Jesus perante o mistério de compaixão em que se convertem o paralítico, o leproso, e tantos outros gestos e atitudes demonstram totalmente o oposto desta distinta sabedoria (…).


Ao contrário da Grécia, que entende o homem em termos metafísicos, em termos de essência (donde, com tanta facilidade, os homens podem ser interpretados como de essência diferente), o cristianismo, ao ajuizar o homem em termos de história e de destino, e considerando esse destino como prometido e concedido a todos os homens, pôde modificar a sua maneira de olhar o pobre. Foi necessária a loucura de um Incompreensível, que considera compreensível o pobre. “Cada rosto é um Sinai que proíbe o assassinato”(…).


Em vez de nos descobrirmos a nós mesmos contemplando-nos ao espelho, descobrimo-nos no rosto do outro, da mesma forma que nos deciframos no rosto de Deus.


O cristianismo não pode separar a sorte de Deus e a do homem. Isso é o que a encarnação fixou na história. Chateaubriand, em os Mártires (1809), narra o episódio de um pagão e de um cristão que encontram um pobre. O cristão dá o seu manto ao pobre e então o pagão diz ao cristão: “pensavas certamente que se tratava de um deus?” – De modo algum, responde-lhe o cristão; eu sabia que era um homem”.


Foi seguramente a partir deste Deus louco e incompreensível como o Evangelho libertou o homem de sucumbir perante a fatalidade, essa fatalidade que marcou tantas vezes o rosto dessa divindade impassível e implacável, insensível ao homem. Todos os historiadores do pensamento e da cultura o dizem e reconhecem, os marxistas à cabeça (escola de Frankfurt, Adorno, Horkheimer): o cristianismo desfatalizou a história. Este seria, segundo eles, o seu único êxito absoluto.»


CONTINUA...


Adolphe Gesché, "Jesucristo", p. 45-48