terça-feira, 16 de dezembro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS[9]



- A Boa Notícia de Paulo -




As ekklesias locais que Paulo fundou procuravam viver num verdadeiro espírito fraterno e de comunhão (aquilo a que chamavam na língua grega de koinonia). Ele desejava que todos se encontrassem num ponto de convergência comum em Cristo: como irmãos amados, testemunhas da ressurreição, e na alegria de viverem como salvos. Porém…

Não eram ainda comunidades modelo. Recém-formadas nas grandes cidades, não podiam deixar de sofrer a influência de um mundo cheio de contrastes e ambiguidades. Nelas conviviam pessoas provenientes de culturas, hábitos e visões religiosas distintas. Aquelas assembleias de Cristãos tinham um longo caminho a percorrer: choques ideológicos entre os judeo-cristãos e cristãos vindos do paganismo, invejas, recaída em práticas pagãs idolátricas ou judaizantes, conflitos... não era fácil formar uma família assim.

Contudo, o Euangelion de Paulo constituía uma força de unidade e vitalidade para estas Igrejas. A sua Boa Notícia era mesmo “excessivamente boa” para ser derrotada pelas dificuldades. O seu zelo incrível, a sua formação rabínica, o contacto com os pagãos, o direito de cidadania romana, o domínio da língua grega, a ousadia e irreverência…tudo isso consagrou-o como uma testemunha excepcional da ressurreição de Jesus! Nem os apóstolos, nem nenhum dos discípulos que tiveram uma vivência histórica com o Nazareno, se atreveriam a sonhar ou a proclamar o que Paulo anunciou…




1 Da Lei à Graça

Perante o seu encontro com o Cristo Nazareno, Paulo chegara à conclusão que a Lei do Sinai não era mais mediação da Benção de Deus. Pelo contrário, aquilo que outrora parecia ser um meio para mudar o coração humano revelava-se na expressão absoluta do que não estava mudado!


O cumprimento das 613 prescrições legais - ou aquilo a que ele chamava “as obras da Lei” – eram resultado da perversão mais absoluta da Torah, e tornavam-se num peso insuportável. Tentar cumpri-las conduzia somente à dureza de coração, à impiedade, e divisão entre os homens. Por isso era impossível que a Lei trouxesse a Salvação. Ela exigia obrigações de tal modo cruéis, que mais depressa levavam à desobediência do que propriamente à sua observância, tornando as pessoas mesquinhas e escravas de minúcias rituais vazias.
Por um lado, os mais duros e impiedosos podiam cumpri-la, e somente eles! Porque só quem caísse em tal espiral de desumanidade convertia-se num “campeão da lei”. Por outro lado, os que não a cumprissem estavam condenados por ela! Para Paulo, este era sem dúvida um beco sem saída para os fariseus e os doutores da lei, dizendo: “os que se apoiam em práticas legais estão sob um regime de maldição” (Gl 3,10).


“Eu não conheci o pecado senão pela Lei. Eu não conheceria a cobiça se a lei não dissesse: Não cobiçarás.” (Rm 7,7); Portanto “onde não existe lei, não há transgressão” (Rm 4,15) e toda a força do pecado é a lei (1Cor 15,56)


A grande Boa Nova de Paulo é que tudo isto foi derrotado pela ressurreição de Cristo. Ele viveu toda a sua vida manifestando um amor gratuito e incondicional, amor que vinha de Deus e que agora atingiu a sua plenitude: ninguém tinha de o merecer! Era pura GRAÇA!
A lógica dos méritos pelas “obras da lei” caiu! A Graça manifestada em Jesus de Nazaré é tudo, e mais do que um dogma, era uma experiência viva de Fé das comunidades primitivas. Muitos seguidores do Nazareno, experimentaram a alegria de que já não havia necessidade de esforço humano para receberem uma vida abençoada e salva! Nenhum judeu devia mais empenhar-se por se aproximar de Deus pelo jejum, a meditação, ou as longas orações aprendidas de cor. Nenhum pagão necessitava de fazer mais sacrifícios aos deuses, praticar uma ascese esotérica, ou aprender os “segredos” e “mistérios” duma religião. Ninguém precisava mais de dizer: “eu tenho de fazer…tenho de me esforçar para mudar…eu é que me devo aperfeiçoar…eu...”


Nas comunidades cristãs de Paulo proclamava-se a Boa Notícia de que era o próprio Deus que tomava a iniciativa de transformar o coração humano, de fazer acontecer o Perdão e realizar uma vida nova, mais plena, enriquecida e abundante. Ele mesmo levaria a bom termo o que começou na ressurreição de Jesus. Bastava confiar, abrir-se e acolher com alegria e esperança a força salvadora de Deus que actuava na vida dos crentes pela acção do Espírito Santo, Dom definitivo do Ressuscitado. Os Cristãos agora viviam da Graça: “Tudo nos foi dado, em Cristo Jesus! TUDO!”



E TUDO é muito mais do que poderíamos esperar…



“Quanto à lei, ela interveio para que proliferasse o delito, mas onde abundou o pecado, super-abundou a Graça (Rm 5,20)


“Portanto, se é por Graça, não se deve às obras, porque senão deixaria de ser Graça” (Rm 11,6)


“O pecado não terá domínio sobre vós, pois não viveis sob a lei, mas sob a Graça” (Rm 6,14)



“Mas Deus é rico em misericórdia; por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa dos nossos delitos, deu-nos a vida com Cristo – é por Graça que vós sois salvos –, com ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Jesus Cristo. Assim, por sua bondade para connosco em Jesus Cristo, ele quis mostrar nos séculos futuros a incomparável riqueza da sua Graça.
Com efeito, é pela Graça que vós sois salvos por meio da Fé; e isso não depende de vós, é dom de Deus. Isto não vem das obras…”
(Ef 2,4-9)


terça-feira, 9 de dezembro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS[8]



- A Igreja dos Cristãos


Graças à acção evangelizadora de Paulo e de outros missionários itinerantes, o movimento dos Cristãos difundia-se desde de toda a Ásia Menor, passando pela Frígia, Panfília, Galácia, e agora propagava-se cada vez mais para ocidente, chegando também à Grécia e Macedónia.

A formação destas novas comunidades no mundo helenizado implicou um distanciamento gradual do judaísmo. Na verdade, a congregação das assembleias dos seguidores do Cristo-Messias iam deixando de ser realizadas nas sinagogas ao sábado. Nas comunidades de pagãos convertidos já não havia necessidade de celebrar a fracção do Pão numa “casa de oração judaica”, formando antes assembleias domésticas.


Cada uma destas assembleias de comunidades fundadas por Paulo era agora designada por um nome já famoso no mundo grego: ekklesia (termo que em português traduz-se como “Igreja”). Paulo não o escolhera ao acaso, uma vez que designava uma realidade anteriormente vivida no mundo pagão, e que agora ganhava um significado pleno no seio do Cristãos.




No mundo antigo a ekklesia nasceu no período do apogeu da civilização grega. No séc. V a.c. a Grécia foi a primeira cultura a instaurar a democracia. Ela constituía uma novidade absoluta na antiguidade, e representava a única alternativa num mundo onde normalmente imperava a lei do mais forte, e onde os poderosos dominavam os mais fracos. A ekklesia era a assembleia principal da cidade de Atenas e representava o pilar democrático da nação. Os seus membros eram provenientes de todas as classes, e em geral formavam um concelho popular para resolver assuntos urgentes de Estado.


Sempre que as cidades gregas viam-se subjugadas por um regime opressivo e corrupto, uniam-se para imediatamente suscitar uma ekklesia de modo a depô-lo. Assim, muitos cidadãos de todas as classes eram congregados a Atenas pelo clamor do povo, por um grito de Liberdade e uma palavra de esperança! Ainda que por razões óbvias, fosse muitas vezes considerada como uma assembleia aparte da autoridade civil, contudo, caso congregasse membros suficientes, a ekklesia reunia o poder necessário para restaurar a justiça e a ordem pública. Por causa de tudo isso era considerada por muitos como a assembleia dos cidadãos livres!


Com efeito, além das decisões de Estado, a ekklesia constituía sobretudo uma reunião democrática de cidadãos que buscavam a justiça relacional, onde houvesse uma supressão radical das suas diferenças. Traduzia por isso o desejo que todos fossem reconhecidos na cidade como iguais e dela participassem com os mesmos direitos, independentemente da raça, género, ou classe social. Foi dessa realidade que Paulo se inspirou para designar as assembleias dos Cristãos…


Para aquele apóstolo dos gentios, por um lado, todos os Cristãos – fossem judeus, pagãos convertidos, ou “prosélitos” – eram congregados por uma Palavra Libertadora do Mestre Nazareno, e Palavra definitiva do Deus que o havia ressuscitado. A Igreja (ekklesia) era assim a comunidade que nascia da Palavra Viva do Deus de Israel, que agora convocava todos os povos à comunhão e convivialidade do Reino!

Por outro lado, Paulo também apresentava-a como uma família, onde todos eram apreciados como iguais, e por isso mesmo valorizados nas suas diferenças! Ela devia ser a utopia de todas democracias: “Já não se distinguem judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, pois agora vocês todos são um só com Cristo [Messias] Jesus.” (Gal 3, 28). Por isso mesmo, a ekklesia implicava a anulação de todos os pólos que dividissem a humanidade: raça, religião, posição social, sexo… Ela constituía uma família de irmãos unidos segundo os laços do Espírito e que vivia na consciência de dar continuidade à missão salvadora de Jesus. Assim nasciam as ekklesias de Éfeso, Corinto, Tessalónica, Filipos, Colosso, entre tantas outras…



As redes de fraternidade que Jesus sonhara formar, manifestavam-se numa unidade que designava a ekklesia de Deus, o foco difusor do Reino a acontecer e a emergir onde menos se esperara. Porém, não era uma realidade alheia ao Império, e nos mais altos círculos já se começava a falar dos Cristãos. Mais tarde ou mais cedo, esta Igreja estava prestes a enfrentar o maior dos desafios…

sábado, 6 de dezembro de 2008

O "VENENO" DO EVANGELHO





«A Cruz não é a morte de um condenado qualquer, senão a morte dos "outsiders", dos escravos e dos delinquentes políticos. E além do mais é uma morte conflituosa em último grau : Sócrates necessitou de quase setenta anos para que o conflito com a sociedade se agudizasse até ao extremo de custar-lhe a vida. No caso de Jesus, uma das coisas mais surpreendentes é a celeridade [rapidez] com que se produz o conflito (quem sabe não chegue a durar mais de um ano; no melhor dos casos, três). E essa é a melhor prova da sua tremenda virulência


José Gonzalez Faus, "La Humanidad Nueva"

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A BOA NOTÍCIA DE UM REINO[3]


- Deus como Abba e a filiação divina



No coração e no âmago do Amor anunciado por Jesus encontramos o núcleo definitivo do Reino: O Deus-Rei é um Abba! Com efeito, os discípulos foram reconhecendo progressivamente em Jesus a novidade de Deus ser um Papá, quer na sua intimidade de oração, quer também na entrega incondicional à Sua Vontade. Viam-no como uma “criança de peito” que se abandonava no colo de um Paizinho, cheio de segurança e ternura. E era assim, movidos por um fascínio irresistível, que aproximavam-se dele formulando este desejo: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11, 1)

O profeta de Nazaré nunca se entende a si mesmo como o “filho unigénito” porque não guardava nada para si, e muito menos a experiência do seu Abba. Por isso, para ele o Abba não é “meu”! É “nosso”, e de todos! E isso faz dele o primogénito, o Irmão maior e primeiro a dar-se aos irmãos; primeiro a conduzi-los ao Coração e à casa do Abba; primeiro que convida os discípulos e as multidões à confiança filial no “Pai Nosso”.
Finalmente estamos diante de um Deus que é radical novidade, porque não é dito a partir de um discurso religioso ou um ideal sagrado, mas que se diz e comunica na vida de um homem que age como Filho e como Irmão! Um Deus do Reino que, em Jesus, rasgou o véu de todas as aparências de divina autoridade ou de uma majestade infinita, ávida pela adoração dos seus súbditos. Deus é Abba: um Pai que é Dom total, que comunica o seu Amor a todos, e a todos concede a mesma filiação divina pela qual Jesus vive.

É então a partir do encanto por este Nazareno, que muitos entram na sua intimidade e começam a experimentar o Abba como ele: um “papá babado” e amoroso que desce ao mais íntimo de cada um para o fazer subir a Si. Ao seu colo que é seio maternal e ventre criador para gerar um coração novo e agradecido. Um coração de filho, alegre e generoso; capaz de mover-se e co-mover-se a procurar todos os irmãos a quem Ele ama e deseja também reunir.


Este dom da filiação divina comunicado em Jesus passa assim a ser condição para uma vida nova e transfigurada. O dom que é condição para agirmos concreta e humanamente como Irmãos, e ao mesmo tempo, dom da eleição daqueles de quem me faço próximo: começando pelos mais débeis e marginalizados, curando as feridas dos magoados, consolando os aflitos, e perdoando os inimigos.


É deste Rei, deste Abba donde irrompe o Reino...






- A maravilha de um Reino invencível


É evidente que um Projecto desta envergadura chamado Reino de Deus era tudo menos teórico. Tinha de abalar as fundações de um mundo ainda dominado pelo mal e a injustiça. Tinha de mexer nas consciências e provocar resistências, especialmente quando Jesus o viveu afirmando que era vontade de Deus.

A cruz revela bem que Jesus não foi nem um romântico, nem um herói de ficção que conhece um “final feliz”. O Reino que anunciou e inaugurou como projecto de fundação de uma nova humanidade foi de tal modo concreto e palpável que chocou com as instâncias mais poderosas de seu tempo: o Templo, a Lei farisaica e o poder imperial. Para estas instituições era urgente deter o Reino daquele Nazareno. Um Reino já inaugurado e em marcha que derrubava o seu mundo ao contrário e ameaçava os seus privilégios de domínio.

Porém, ainda que entregue ao poder destes inimigos do Reino, e mesmo crucificado, Jesus confiava que o Abba seria Fiel. E nessa confiança entrega a vida ao Pai. Na morte entrega-a como coroa do Reino que inaugurou e edificou, como que dizendo: “Toma-a, é tua. Contigo ela não há-de se corromper. Ainda que eu morra, o teu Reino prevalecerá!”

Jesus morre, contudo não era o Fim…chegara a hora do Abba intervir! Se Ele não tinha o poder de tirar Jesus das mãos dos seus malfeitores, tinha certamente o poder do Amor, poder de o assumir plenamente em Si! Isso significa que o Abba aceita a coroa! Recebe-a porque apaixonou-se pela vida nela contida, ao ponto de identificá-la com o Reino que desejou desde a Criação do mundo. O Abba ao ressuscitar Jesus aceitou a coroa da sua vida, coroando-o com a própria Vida Divina, e entregou-lhe toda a soberania para o consagrar como Senhor da história.

Deus já não necessita de identificar o Reino com um sonho, ou uma esperança. Ele Identifica-o agora com um Vivente: Jesus ressuscitado! Para o Abba, Jesus é o Reino. A partir de agora, nem o ladrão pode furtar a Coroa, nem a traça já pode corromper o que é incorruptível! O Reino é invencível, imortal, vital, dinâmico, está presente, a acontecer na nossa humanização, aqui e agora, e continua imparável…


O Reino de Deus é hoje Dom da ressurreição de Jesus a acontecer na nossa história. É uma realidade já inaugurada e aberta a uma consumação futura: a sua promessa cumpriu-se, é permanente, ainda não terminou, está na fase dos acabamentos, e continua a necessitar de colaborares, discípulos, Filhos, e Irmãos. É Universal, e por isso além de qualquer religião ou crença, além de qualquer raça ou condição, além de qualquer tempo, a construir-se na liberdade humana, e a brotar de homens e mulheres de Boa Vontade que se unem ao coração e à causa do Ressucitado!



Ei-lo Aí! Para quem o quiser ver e o quiser agarrar! Á mão de semear e à mão de colher...Aí está o REINO a acontecer!