sábado, 19 de outubro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [7] - CARTA DO CATIVEIRO DE BIRMINGHAM (2ª parte)





Para quem nunca sentiu no corpo as farpas da segregação talvez seja fácil dizer “Espera”. Mas para quem viu multidões perversas linchar-lhe sem dó nem piedade pai e mãe e afogar a seu bel-prazer irmãos e irmãs; quem viu polícias dominados pelo ódio insultar, espancar e mesmo matar os seus irmãos e irmãs negros; quem vê a esmagadora maioria de vinte milhões de Negros seus irmãos sufocar numa asfixiante bolha de pobreza no meio duma sociedade próspera; (…) – para esses é fácil compreender porque razão nós temos dificuldade em esperar. Chega uma altura em que o copo da paciência transborda e os homens não mais querem ver-se mergulhados no abismo do desespero. Espero, meus senhores, que sejam capazes de compreender a nossa legítima e inevitável impaciência.

            (…) tenho de confessar que nos últimos anos os Brancos moderados me desiludiram muito. Cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo que o Negro enfrenta na sua caminhada para a liberdade não é o membro do Conselho dos Cidadãos Brancos, ou do Ku Klux Klan, mas sim o Branco moderado, que preza mais a “ordem” do que a justiça; que prefere a paz negativa que é ausência da tensão à paz positiva que é a presença da justiça; (…) que duma forma paternalista acha que pode ser ele a definir o calendário para a libertação de outro homem (…). É mais frustrante a compreensão superficial à gente de boa vontade do que a incompreensão absoluta de gente de má vontade. É muito mais irritante uma aceitação morna do que uma rejeição firme. (…)

            Quem desobedece a uma lei injusta tem de fazê-lo de forma aberta, convicta e na disposição de aceitar as consequências do seu ato. Entendo que uma pessoa que infringe uma lei que em consciência considera injusta, e está pronta a aceitar a pena de prisão para assim alertar a consciência da comunidade para essa injustiça, está na realidade a dar provas do maior respeito pela lei.

            (…) E agora vindes dizer-me que esta via é extremista. Mas embora tivesse ficado triste por me chamarem extremista, à medida que fui pensando no assunto fui começando a gostar do rótulo. Pois não foi Jesus extremista do amor: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam”? Não foi Amós um extremista da justiça: “Corra o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso?” Não foi Paulo um extremista do evangelho: “trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus”? (…) Portanto a questão não está em saber se somos ou não somos extremistas, mas sim que tipo de extremistas seremos. Seremos extremistas do ódio ou extremistas do amor? Seremos extremistas da perpetuação da injustiça ou da causa da justiça? (…)

         Permiti-me que vos dê conta da minha outra grande decepção. Fiquei profundamente decepcionado com a Igreja branca e seus dirigentes. (…) Fiquei desapontado com a Igreja. Não estou com isto a querer alinhar com aqueles críticos negativos que têm sempre algum erro a apontar à Igreja. Falo apenas como ministro do evangelho que ama a Igreja; que foi criado no seu seio; que se amamentou das suas bênçãos espirituais e se irá manter fiel a ela enquanto tiver um sopro de vida. (…)
            No meio duma luta implacável para acabar com a injustiça racial e económica no nosso país, ouvi muitos pastores dizer: “são questões sociais, com as quais o evangelho não tem nada a ver”. E vi muitas igrejas dedicarem-se a uma religião do outro mundo que faz uma distinção estranha, que a Bíblia não suporta, entre o corpo e a alma, entre o sagrado e o profano. (…)
            Muitas vezes perguntava a mim próprio: “que espécie de fiéis vem rezar aqui? Que Deus é o deles? Onde estavam as suas vozes quando os lábios do Governador destilaram palavras de interposição e aniquilação? (…) Onde estavam as suas vozes de apoio quando os Negros, homens e mulheres, maltratados, exaustos, decidiram erguer-se das negras masmorras da complacência para subir as radiosas colinas do protesto criativo?”

            Pois bem, estas perguntas continuam a bailar-me no espírito. Profundamente decepcionado, tenho chorado perante o laxismo da Igreja. Mas podeis ter a certeza que as minhas lágrimas são lágrimas de amor. Não pode haver decepção profunda onde não há amor profundo. Sim, eu amo a Igreja. (…)
            Tempos houve em que a Igreja tinha muita força – foram os tempos em que os primeiros cristãos rejubilavam por se sentirem dignos de sofrer por aquilo que acreditavam. Nesses tempos a Igreja não era um mero termómetro que registava as ideias e princípios da opinião pública; era um termostato que transformava os costumes da sociedade. Sempre que os primeiros cristãos punham os pés numa cidade, os detentores do poder entravam em pânico e imediatamente tratavam de mandar prender os cristãos acusando-os de serem “perturbadores da paz” e “intrusos agitadores”. (…)

            Agora as coisas são diferentes. (…) Longe de se sentirem perturbadas pela presença da Igreja, as instâncias do poder duma comunidade normal sentem-se reforçadas pela aprovação tácita – quando não mesmo expressa – que a Igreja dá ao atual estado de coisas.

            (…) Durante mais de dois séculos, os nossos antepassados trabalharam sem salário neste país;(…); construíram as casas de seus senhores suportando as maiores injustiças e a mais vergonhosa humilhação – e mesmo assim deram provas duma vitalidade inesgotável e continuaram a crescer e a multiplicar-se. Se as inomináveis crueldades da escravatura não conseguiram travar-nos, DE CERTEZA que também não vai ser a oposição que agora enfrentamos a consegui-lo.

(…) Vocês felicitam calorosamente a polícia de Birmingham por ela manter a “ordem” e “prevenir a violência”. Duvido que a tivessem felicitado da mesma forma calorosa se tivésseis visto os seus cães ferrar os dentes em Negros desarmados e não-violentos. Duvido que vocês fossem tão apressados a felicitar a polícia se vissem o tratamento indigno e desumano que ela dá aos Negros aqui, na prisão municipal; se a vissem empurrar, insultar as mulheres negras, velhas e novas; (…) se a vissem recusar-nos comida, como aconteceu duas vezes, só porque nós queríamos cantar (…).

            Nunca na minha vida tinha escrito uma carta tão longa. Receio mesmo que seja demasiado longa para o vosso precioso tempo. Posso garantir-vos que teria sido bem mais curta se tivesse sido escrita numa mesa confortável, mas o que é que um homem pode fazer quando está sozinho numa cela exígua, a não ser escrever cartas longas, ter pensamentos longos e rezar orações longas? (…)

            Vosso pela causa da Paz e da Fraternidade
           
 Martin Luther King Jr.


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [6] - CARTA DO CATIVEIRO DE BIRMINGHAM (1ª parte)




Martin, atirado para uma cela solitária julgava-se no fim da linha. Contudo, no dia seguinte, foi transferido para uma cela vulgar, com direito a contactar a sua mulher, Coretta, e  seus advogados.  Graças à intervenção do Presidente John F. Kennedy, que contactara pessoalmente a polícia municipal de Birmingham, Martin Luther King gozava agora de proteção. Contudo permanecia detido.

Mais tarde diria: "Durante mais de vinte e quatro horas mantiveram-me incomunicável, numa solitária. Ninguém estava autorizado a visitar-me, nem mesmo os meus advogados. Foram as horas mais longas, frustantes e revoltantes que alguma vez vivi."

Entretanto, Martin recebe uma carta dos líderes religiosos de Birmingham (protestantes, católicos , entre outros) apelando que King terminasse com as manifestações, e reforçando a ideia de que era urgente "paciência", "negociação" e outras formas de protesto mais "moderadas".

Martin, que acima de tudo vivera as manifestações na pele, resoluto, decide escrever uma carta de resposta. Sem direito a folhas de papel, improvisou, à rebelia do estabelecimento prisional, escrever nas margens de jornais usados e em rolos de papel higiénico a sua carta. Depois, clandestinamente passou-a de mão em mão na prisão, até sair de lá e chegar aos destinatários. Ali mesmo naquela prisão, Martin escreveu uma das mensagens mais inspiradas, frontais e marcantes da sua campanha pela justiça e liberdade.


Excertos da 1ª parte da carta: 

Encarcerado na prisão municipal de Birmingham, fui confrontado com a vossa recente declaração, onde consideram as minhas actividades recentes como “insensatas e inoportunas”. (…)
Acho que devo começar por explicar-vos a razão da minha presença em Birmingham, já que verifico que vocês foram influenciados pela ideologia que é contra os “intrusos que vêm de fora”. (…) Há vários meses a nossa filial de Birmingham pediu-nos que preparássemos para participar num programa de ação direta não-violenta se esta viesse a revelar-se necessária. De imediato acedemos a esse pedido, e na altura própria cumprimos a nossa promessa.(...)

            Mas mais importante que tudo, estou em Birmingham porque a injustiça está cá. Do mesmo modo que os profetas do século VIII a.C. deixaram as suas aldeias para levar a sua “palavra do Senhor” muito para além dos limites das suas terras natais, e do mesmo modo que o apóstolo Paulo deixou a sua aldeia de Tarso para levar o evangelho de Jesus Cristo às longínquas paragens do mundo greco-romano, também eu me vejo na obrigação de levar o evangelho da liberdade para fora das fronteiras da minha cidade natal. (…)

            Não posso ficar tranquilamente em Atlanta sem me preocupar com o que se passa em Birmingham. A injustiça onde quer que ocorra, é uma ameaça à justiça em todos os lugares. Estamos presos numa rede de relações mútuas a que não podemos fugir, o destino a todos envolve num único manto. O que quer que afete um, diretamente, afeta a todos, indiretamente. Não mais nos podemos dar ao luxo de viver segundo a ideia mesquinha e provinciana do “agitador vindo de fora”. (…)

            Vocês criticam as manifestações que se têm realizado em Birmingham. Mas a vossa declaração, lamento dizê-lo, não exprime a mesma preocupação face à situação que está na origem dessas manifestações.

            (…) Organizámos uma série de sessões de trabalho sobre o tema da não-violência e repetidas vezes pusemos a nós próprios a pergunta: “Estás preparado para receber ofensas e não responder com agravos?” “estás preparado para suportar as duras provas da prisão?”

            Podem perguntar: “Porquê ação direta? Porquê ocupações de instalações, marchas e outras iniciativas do género? Não é preferível a via da negociação?” Tendes toda a razão em apelar à negociação. Aliás, esse é o verdadeiro objetivo da ação direta. Com a ação direta não-violenta pretende-se criar uma crise tão grande e uma tensão forte que forcem uma comunidade que sistematicamente se recusa a negociar a encarar a situação. Pretende-se dramatizar a situação para que deixe de ser possível ignorá-la. Talvez vos choque o facto de eu mencionar a criação de tensão como fazendo parte do trabalho do resistente não-violento. Mas devo confessar-vos que não tenho medo da palavra “tensão”. Sou decididamente contra a tensão violenta, mas há um tipo de tensão construtiva, não-violenta que é necessário para se poder avançar. (…)


O objetivo do nosso programa de ação direta é criar uma situação tão crítica que abra inevitavelmente a porta à negociação. (…)


            Meus amigos, quero dizer-vos que nunca conseguimos nada em termos de direitos civis sem a ajuda duma pressão determinada, legal e não-violenta. Lamentavelmente, a história mostra-nos que raramente os grupos privilegiados abrem voluntariamente mão dos seus privilégios. (…)


     Sabemos por dolorosa experiência própria que o opressor nunca concede voluntariamente a liberdade; tem de ser o oprimido a reivindicá-la. (…) Há anos que ouço a palavra “Espera!”. Ela ressoa nos ouvidos de todos os Negros com uma familiaridade penetrante. Esta palavra “Espera” quase sempre quer dizer “Nunca”. Não podemos deixar de constatar, com um dos nossos distintos juristas, que “justiça muito adiada é justiça negada”. (…)

sábado, 5 de outubro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [5] - A PROVAÇÃO DE BIRMINGHAM






 “Entendo que uma pessoa que viola uma lei que em consciência considera injusta, e está pronta a aceitar a pena de prisão para assim alertar a consciência da comunidade para essa injustiça, está na realidade a dar provas do maior respeito pela lei”
Martin Luther King, Birmingham, 1963.


À medida que os anos de luta não-violenta iam passando, King e a sua associação (o SCLC) iam adquirindo algumas vitórias, mas também amargas derrotas. Por exemplo, em Albany o movimento dos Direitos Cívicos não vingou, pois outras associações não concordavam com o método não-violento de King. Uma delas, o SNCC, era liderada por estudantes universitários negros e uma dissidente do SCLC, que guardava algum ressentimento a King. Achavam-no um idealista, movido mais por convicções religiosas pseudo-messiânicas do que por estratégias realistas.

Quando ele falava, no gozo chamavam-no “o Senhor”, troçando dos seus discursos geralmente inflamados e arrebatadores. Em consequência disso, os protestos e marchas dividiam-se e não havia organização. Na falta de coesão, depressa a maioria da comunidade negra cedeu ao desânimo, e a luta pela liberdade em Albany sofreu um revés.

Em 1961, tinham-se iniciado as “Viagens da Liberdade” (Freedom Riders). Constituídas por grupos de jovens brancos e negros que viajavam em autocarros, tinham por objetivo percorrer toda a América, sensibilizando as populações para a realidade duma convivência social e inter-racial sem segregação. Contudo, a violência de grupos fanáticos racistas conduziu à matança e linchamento de alguns grupos de ocupantes, resultando até em autocarros incendiados. Martin, irritado, pedia ao recém-eleito presidente John F. Kennedy escoltas de soldados federais que garantissem a proteção dos viajantes, mas tal não aconteceu.

Apesar de todas as contrariedades – que não foram poucas, nem menores -,com uma determinação invencível, Martin mantinha acesa a chama da esperança…

Em 1963, King e os seus companheiros do SCLC decidiram avançar “de cabeça” para uma das ações mais ousadas de sempre. Iriam promover a luta pelos Direitos Cívicos na cidade sulista mais segregada da América: Birmingham. Lá, não só se fazia sentir na máxima intensidade a injustiça do racismo, como também era a cidade com a maior desigualdade económica da nação. Desde os anos 30, Birmingham foi marcada por uma onda de violência contra os operários afro-americanos, promovida pelos donos da Indústria local e pelos seus poderosos interesses financeiros, que estendiam os seus tentáculos até ao Norte.


Martin Luther King estava disposto a “cavar um túnel de esperança na enorme montanha do desespero” de Birmingham. Se lá conseguisse chamar a atenção do país e do Supremo Tribunal de Justiça, então, esse exemplo iria alastrar-se por contágio em todos os estados americanos.

Em Birmingham, King contou com a colaboração de James Bevel, um ativista da luta não-violenta gandhiana, e também do reverendo Fred Shuttlesworth, que já tinha sofrido atentados, esfaqueado, preso e espancado por defender os direitos da comunidade negra. A população enfrentava a mão de ferro da polícia municipal, comandada pelo cruel comandante Connor, na altura conhecido e temido pela comunidade negra como “Bull Connor” (o “Touro Connor”.


Após as eleições autárquicas do município, Martin deu início à operação “projeto C”“C” de Confrontação –, que consistia em “sit-ins”, isto é, ocupações em massa de cidadãos de côr em lugares públicos em toda a cidade reservados apenas a brancos. Com isso, esperava uma reação de “Bull Connor”, com intuito de mostrar à América e ao mundo a violência e o tratamento desumano da sua polícia de choque, mandatada para usar todos os meios necessários de modo a manter os obscuros interesses segregacionistas.

E assim foi. Na sequência das ações diretas de protesto não violento da comunidade negra, seguiram-se bastonadas, pontapés, cães-polícia lançavam-se violentamente sobre pessoas indefesas (também mulheres e crianças) mordendo-as como se representassem uma ameaça iminente à “paz” e “ordem”, mangueiras de água sob pressão descarregavam sobre os manifestantes projetando-os por vezes a vários metros, arrastados pelo chão; inúmeras detenções seguiam-se ao comando de Connor. Contudo, muitos, durante a detenção gritavam: Não tenho medo dos vossos cães…”; “Não tenho medo das vossas mangueiras”; “Não tenho medo de nenhum Bull porque quero a minha liberdade! Quero a minha liberdade! Quero a minha liberdade AGORA!”.

 

Preocupados com a imagem que estava a ser passada, as autoridades de Birmingham conseguiram que o Tribunal estadual estabelecesse um embargo a todo o tipo de manifestações.


Entretanto King queria participar numa próxima manifestação, convidado pela comunidade local. Mas isso representava um dilema terrível: por um lado, o SCLC necessitava do seu líder para sair da cidade e fazer conferências em todo o país, apelando à consciência da nação, sobretudo angariar fundos para pagarem a fiança de muitas famílias que enchiam as prisões municipais de Birmingham. Mas, se Martin saísse da cidade, arriscava-se a perder a solidariedade com os manifestantes e não dar a cara pelo “projeto C”. Por outro lado, se Martin fosse à manifestação, desobedecia ao Tribunal estadual, e podia pôr em risco a legalidade das suas ações, a sua liderança, e arriscar perder para sempre qualquer ação legal a favor dos Direitos Cívicos.

Atormentado por este dilema, Martin fechou-se isolado numa sala ao lado da reunião com os seus companheiros, e orou. Diria mais tarde: “sentei-me no meio do mais profundo silêncio que alguma vez senti”. Meia hora depois, sai da sala com um ar determinado e vestido com uma camisa e calças de ganga dizendo: “Não sei o que irá acontecer! Não faço ideia donde virá o dinheiro, mas tenho de fazer um ato de fé”. Decidira ir à marcha e desobedecer ao “embargo imoral” do Tribunal.



A 12 de Abril, acompanhado do seu fiel amigo Abernathy, juntou-se à manifestação e em coro com os manifestantes gritava: “A liberdade chegou a Birmingham!”. Os homens de Connor estavam a postos, e mal viram King aproveitaram imediatamente a oportunidade: agarraram-no violentamente pelo cinto e levaram-no para um carro-prisão.




Nessa mesma noite, Martin Luther King foi atirado para uma cela escura e isolada. Julgava que desta vez o iriam matar…