terça-feira, 28 de outubro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS [4]


- O homem novo -


Nascer de novo, nascer novo… a experiência pascal de Saulo era profunda e marcara-o a ferro e fogo. O encontro com o Nazareno ressuscitado apanhara-o como uma espada afiada que penetrava-lhe o fio da vida a ponto de rasgá-la em dois momentos: o “antes” e o “depois”… a luz que encontrara no seu íntimo era tão ofuscante que convergia num pólo de atracção invencível, impulsionando-o para um salto qualitativo, um seguimento…porém, seguir aquela luz exigia também superar o túnel escuro e tenebroso das lógicas antigas.


Aquele jovem sentia-se ainda envolvido numa luta interior, dividido entre o velho fariseu que ainda o habitava e o novo seguidor do Nazareno que inesperadamente emergia. Romper com os princípios e tradições farisaicas implicava sobretudo uma ruptura de esquemas mentais dominantes. Não era tarefa nada fácil, e como se não bastasse havia perguntas que não cessavam de atormentá-lo: “E agora? O que fazer? Para onde, como, e com quem?” Experimentava assim uma crise intensa que o suspendia num estado de vertigem, conflito e instabilidade. Sentia-se como um cego que desesperadamente procurava apoio.

“Saulo levantou-se do chão e, ao abrir os olhos, não enxergava…” (Act 9,8)

Na verdade, sozinho, Saulo jamais estaria capacitado a alcançar um outro paradigma, uma nova coerência de ser e de viver. O encontro com o ressucitado tinha apenas assinalado o início de uma longa etapa, por isso a sua conversão não teve nada de espontâneo ou automático nem se deveu a um “acto mágico”. Foi antes o resultado de um processo, um caminho catecumenal mediado por um contexto propício: a própria comunidade dos nazarenos de Damasco! Saulo foi então “conduzido pela mão” pela mesma comunidade que tencionara destruir. E lá permaneceu o tempo suficiente até lhe “caírem as escamas dos olhos”. Para isso foi fundamental a intervenção privilegiada de Ananias. Este discípulo de Damasco tornara-se assim no principal mediador da acção da Ruah em Saulo: “Irmão Saulo, o Senhor Jesus me enviou, aquele que te apareceu quando vinhas, para que recuperes a visão e te enchas do Espírito Santo” (Act 9,17)




Paciente e de forma muitas vezes sofrida, como que gemendo as dores de um parto, Saulo reconstruía-se com os critérios da fraternidade que vivia com os nazarenos. A pouco e pouco, este jovem renascia robustecendo-se na Fé, na alegria e na força do Euangelion. E neste caminho de conversão, reformulava também toda a sua visão da Lei e da Antiga Aliança à luz dos preciosos estudos rabínicos que recebera. Assim, a Boa Nova do Galileu de Nazaré adquiria para ele um sabor de confirmação que mais ninguém ainda conhecia, nem mesmo os primeiros discípulos. A re-leitura de toda a história do seu povo com o Deus de Israel harmonizava na perfeição com a vida, as opções e as palavras do ressucitado! Tal revelação não podia permanecer com ele, sentia-se compelido a partilhar esta Boa Notícia a qualquer custo…


Não podendo mais conter o entusiasmo “logo se pôs a proclamar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus [Messias]” (Act 9,20). Como retaliação, alguns judeus que o escutaram decidiram matá-lo porque aquele anúncio confundia-os. Talvez lhes perturbasse mais ainda ouvirem estas coisas dum ex-fariseu, um ex-inquisidor dos nazarenos. Isso sim, confundia-os e assustava-os de verdade! Sem outra alternativa, os discípulos de Damasco planeiam a fuga de Saulo. Procurando evitar fazê-lo sair pelos portões vigiados da cidade, descem-no num cesto pelos seus muros. Assim Saulo parte para longe, retirando-se por algum tempo para o território da Arábia…





A experiência pascal de Saulo foi talvez a mais radical que alguma vez conhecemos em toda a história da salvação. O jovem que se consagrou como instrumento de morte aos nazarenos, convertera-se para se tornar em breve num “instrumento escolhido para difundir meu nome entre pagãos, reis e israelitas” (Act 9,15). A sua grande paixão deixara de ser a Lei, e o seu zelo irrepreensível, outrora farisaico, gravitava agora, e com ainda mais vigor, em torno do Christós [tradução grega de Messias].


A ressurreição do Cristo-Messias-Ungido era o núcleo do seu Kerygma, a Boa Novidade que trazia a libertação e a vitória sobre o homem velho, aquele que conhecera tão bem e o mesmo que tombara à entrada de Damasco. A vinda do homem novo, mais tarde proclamado por Saulo, não só era inaugurada na vida do Mestre de Nazaré, mas também adquiria carne e autoridade na sua própria vida. Por isso não tinha qualquer pudor em anunciar que “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20). O amor vencera-o, e agora era preciso derramá-lo a todos os que ainda não o conheciam…


“Quem nos afastará do amor de Cristo: tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada?(…)Em todas essas circunstâncias, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou. Estou convencido de que nem a morte, nem a vida, nem anjos nem potestades, nem presente nem futuro, nem poderes, nem altura nem profundidade, nem criatura alguma nos poderá separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus Senhor nosso.”

Rom 8, 36-39

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pela maneira bonita como agarraste a figura dePaulo. Para mim ele é o maior sinal de que Cristo ressuscitou.
Um abraço
Calmeiro Matias

Anónimo disse...

A experiência que Paulo viveu, fez-lhe ver claro que, aquele Jesus afinal tinha sido morto simplesmente por ser um homem bom, um verdadeiro homem em quem se concretizava tudo o que de bom pode haver num homem: verdade, solidariedade, compaixão, serviço aos mais fracos e desprotegidos, e tudo levado às últimas consequências. Agora percebia que, esse Jesus também era verdadeiramente divino. N'Ele estava presente o Deus que só quer a felicidade dos seus filhos, a começar pelos menores.E a vida virou-se-lhe do avesso...e ele tornou-se num homem novo, incapaz de calar o que lhe tinha sido dado descobrir.