quinta-feira, 2 de julho de 2009

Dizer Deus dizendo o homem [3]



« Em quase todas as concepções religiosas de Deus, a divindade é um Deus que inspira temor, espanto. A maior parte dos deuses, incluindo a ideia de divindade, são violentos, a não ser que sejam simples figuras estéticas ou simbólicas, como na Grécia. O homem tem medo dos deuses e a religião possui todo um sistema de sacrifícios, fórmulas de conjuração e rezas de expiação; uma montagem que sirva para conseguir, senão o favor dos deuses, ao menos que o temor e a vingança se afastem deles. A relação entre Deus e o homem é, portanto, aqui uma relação de violência e temor.


(…) O medo gera medo, a violência gera violência.
Um Deus de violência e de temor, que provoca o medo, coloca o homem no medo e na violência, não somente em relação a ele, a Deus, mas em relação a si próprio, o homem, e em relação ao próximo.


Dando a volta à frase de Lucrécio:
o medo criou os deuses” poderíamos reformulá-la deste modo: “Os deuses criaram homens temerosos”.


Os deuses, e uma determinada imagem de Deus, instalaram o medo e a violência no homem convertendo-o num ser aterrorizado. Toda a religião contém nas suas entranhas – e o cristianismo ainda não se livrou de todo este trauma - o risco da violência e da sua escalada.


(…) É “normal” que os deuses sejam violentos, omnipotentes, arbitrários, provocadores do medo e do espanto, recorrendo a formas ingénuas (terramotos, tormentas, etc.), ou ainda sob formas subtis de culpabilização da consciência e de terror.


Sem dúvida, uma vez mais, temos de nos perguntar senão é o Deus da loucura, o revolucionar tudo o que parece normal, e que vem mudar as coisas e assegurar (coisa incrível) que a relação entre Deus e o homem não é de temor e de violência, e que o homem não foi criado para o medo, (…)


“Vós não haveis recebido um Espírito que faça de vós escravos, novamente no temor, senão que haveis recebido um Espírito que faz de vós filhos adoptivos” (Rom 8, 15). (…) “Não temas, porque estou contigo” (Gen 26,24).


O texto fundador é este: “ Já não vos chamo servos mas amigos”. [A partir daqui] A relação entre Deus e o homem ficou completamente subvertida, mas
quem sabe não nos tenhamos adaptado verdadeiramente a esta novidade inquietante e não saibamos ainda medir todas as consequências.


(…) Jesus veio anular o antigo vínculo religioso entre o sagrado e a violência. Um Deus de Encarnação não é já um Deus de incandescência. Como diz extraordinariamente Rilke: “Os que com frequência nos ameaçam são deuses desocupados”. Pelo contrário, o Deus ocupado do homem,
o Deus que se encarna, vem acabar com toda a violência do deus entrincheirado em si mesmo, que fundamenta o seu poder numa sacralidade e num anonimato de ameaça.


A ideia de encarnação é, (…), a ideia da dissolução do sagrado como violência. Porque, adiante, o sagrado se entende como o sagrado da kenosis [entrega total de si], do despojo, da doação. Isto é, do Deus amigo dos homens (liturgia oriental); que vem a nós à margem da barbárie e da violência de uma glória divina custodiada por ele zelosamente (Flp 2, 6); que estabeleceu o seu posto, a sua tenda e sua casa no meio de nós (Jo 1,14); anunciando-nos que, do mesmo modo que o seu Cristo, nós podemos tratá-lo como um Pai.


Seria desejável que, depois, do “livra-nos do mal”, se acrescentasse no final do Pai Nosso um “livra-nos do medo”. O mesmo que ocorre com a fatalidade, o cristianismo adverte-nos que não devemos viver nem nos deixarmos conduzir pelo temor.


Dessa relação com Deus, completamente nova e de todo surpreendente, nasce um homem novo e liberto, de que ainda não foi assumida, nem nos atrevemos ainda a assumir em toda a medida. Porque esta é efectivamente…incompreensível! E é – devemos repeti-lo – na revolução cristã donde nos fazemos compreensíveis a nós mesmos (definitivamente, não violentos) graças à incompreensibilidade de um Deus que é amor. Porque esse reino da não-violência, do não-medo, é o reino do amor. “No amor não há lugar para o temor” (1 Jo 4, 18).


Quando S. João define Deus como amor (veja-se 1 Jo 4,8.16), do que se trata é – e nós não nos damos conta disso – de uma verdadeira transgressão a todas as ideias comuns sobre Deus. Deus, com efeito, deixa de ser um Deus ameaçador.


Então, o homem já não é um ser ameaçado. “Livre do temor” ( Lc 1,74), livre “de nossos inimigos” (ibid.), é dizer, desses demónios obscuros que tem dentro e o aterrorizam, o homem pode finalmente “servir a Deus” (ibid.), sem sentir-se já ameaçado e sem converter-se já numa ameaça para si mesmo.


“Deus não sabe desapreciar nem desdenhar. Pelo contrário, Ele desdenha a ameaça” (Sto Agostinho, Sermão 23,6).


(…) A amizade divina de que falavam os Padres da Igreja: a que existe no seio de Deus (a Trindade) e que deve existir em nossos corações e entre nós (Reino de Deus), nesta terra onde desaparecem os cavalos do Apocalipse. Para que o homem seja livre e já não se sinta ameaçado, deve saber que seu Deus não é um Deus ameaçador, senão um Deus pacífico.

Não é este o Deus que vem armar a sua tenda entre os homens, um Deus que não tem medo em afirmar, que estando entre nós, está nele mesmo? (Jo 1,11)?»



Adolphe Gesché, "Jesucristu", p.51-55

Estava a escrever isto e a recordar-me de quantas vezes Jesus diz aos discípulos, e a todos com quem se encontrava: “não temas”, “não tenhas medo”. Talvez seja mesmo a sua expressão mais frequente. Estou cada vez mais convencido, – e quantas vezes o sinto na pele – que o medo é o pior inimigo do evangelho! O nosso inimigo comum (de Deus e do Homem), o único e definitivo demónio a derrotar… acredito mesmo que o contrário da Fé não é a “descrença” ou o “ateísmo”, mas o medo.

Recordo-me também de algo muito bonito que o Professor António Couto nos transmitiu certa vez. Ele dizia que a palavra “sagrado” ou “Santidade” advêm da mesma raiz que significa “distância, separação”. Dizia que é das palavras mais adulteradas que existe; enquanto nos precipitamos a traduzi-la como “separação” entre Deus e os homens, na experiência de Israel, e sobretudo para os autores da corrente profética, significava precisamente o contrário. Recordo dele dizer mais ou menos assim:

«Afirmar a santidade de Deus é dizer que Ele está absolutamente separado de si próprio, descentrado de si mesmo, para Ser totalmente para o Homem, para dele se dedicar com toda a ternura e cuidado, para nele habitar e fazer morada. Por isso, somente o Deus verdadeiramente Santo é verdadeiramente um Deus Connosco!».

Dada a riqueza do texto, tinha de acrescentar este apêndice delicioso…

SHALOM

2 comentários:

calmeiro matias disse...

Obrigado Gustavo por esta selecção de textos tão deliciosos.
Obrigado pela maneira bonita como sabes falar de Deus.
Obrigado pela visão sábia da tua fé.
Um abraço
Calmeiro Matias

Alice Claro disse...

Hoje enquanto celebrávamos algures a meio da leitura o cego disse aos fariseus... estais sempre a perguntar-me como é que ele me curou... até parece que vos quereis tornar seus discípulos... e sabes... eu acho que é mesmo assim que tudo acontece... a partir do momento em que questionamos como é que ele conseguiu sentar-se à mesa com quem o ía entregar, com quem o ía negar, dar-lhes de comer e de beber, no fundo, perdoar-lhes tudo antecipadamente... a partir do momento em que questionamos como é possível ser tão forte, tornamo-nos seus discípulos, porque é impossível fechar os olhos ao ver tanto amor a superar o medo.

SHALOM