terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

“Um homem descia de Jerusalém para Jericó...”




«As parábolas não servem para ilustrar um ponto de vista. São acontecimentos fortes que nos mudam. Mudam as nossas vidas virando-as do avesso.


Um rabi judeu contou a seguinte história passada com o seu avô nos tempos em que este fora aluno do famoso Rabi Baal Shem Tov. E disse:
«O meu avô estava paralítico há muitos anos. Um dia pediram-lhe que contasse uma história do seu professor e ele contou como o santo Baal Shem Tov costumava saltar e dançar durante a oração. Ao contar a história, entusiasmou-se de tal modo que se pôs de pé e começou a saltar e a dançar para mostrar como o mestre fazia. A partir daí, ficou curado. É assim que se devem contar histórias.»


As parábolas de Jesus deviam despertar-nos e arrebatar-nos. Encontramo-nos envolvidos nos seus dramas e elas transformam-nos. Jesus normalmente fazia isto porque conseguia chocar as pessoas. O problema é que conhecemos tão bem as parábolas que já raramente elas nos surpreendem. É como ouvir uma anedota quando já se lhe conhece a piada. Temos de redescobrir o sentido da surpresa.
A parábola do Bom Samaritano escandalizou os que primeiro a ouviram. Precisamos de redescobrir o sentido do choque.

Durante a revolução na Nicarágua, um dominicano americano ajudou um grupo de jovens nicaraguanos a representar a parábola do Bom Samaritano durante a Missa. Representaram um jovem nicaraguano a ser espancado e abandonado meio morto na beira do caminho. Um frade dominicano passou por ali e continuou o seu caminho sem fazer caso dele. A seguir, passou um dos inimigos, um ‘Contra’, trajando o uniforme militar. Parou, pôs-lhe um rosário ao pescoço, deu-lhe água e levou-o até à aldeia mais próxima. Nesta altura, metade da assembleia reagiu começando a gritar e a protestar. Era inaceitável que um Contra pudesse agir desta forma. "São pessoas horríveis e nada temos a ver com eles". A Missa interrompeu-se no meio do caos.


Depois, as pessoas começaram a discutir o significado da parábola. Porque tinham ficado chocadas, conseguiram compreendê-la mais profundamente. Concordaram que no futuro não se refeririam mais aos outros como ‘os Contras’ mas como ‘os nossos primos das Honduras’ ou ‘os nossos primos que estão no erro’... Voltaram a fazer o rito inicial da confissão dos pecados, deram uns aos outros o abraço da paz, e continuaram a celebração da Eucaristia. É assim que nos deveríamos sentir chocados.


O caminho

A história conta-nos uma viagem de Jerusalém até Jericó. Eu fiz essa viagem a pé, descendo a Wadi Quelt. São cerca de 24 Km, através de uma região de deserto rochoso. Fazia tanto calor que um dos meus companheiros ficou um pouco transtornado da cabeça. Mas a história em causa trata de uma viagem mais profunda. A palavra que Lucas emprega para “viagem” é a mesma (hodos) que emprega para fé cristã, “o Caminho”. A parábola é um caminho que transforma a nossa compreensão de Deus e do ser humano.



Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões ?

O doutor da lei pergunta: “Quem é o meu próximo?” E no fim, Jesus coloca uma questão diferente: “Qual dos três mostrou ser o próximo do homem que caiu nas mãos dos ladrões?” A pergunta do doutor põe-no a ele no centro. Quem é o seu próximo? Mas a parábola transforma a pergunta: é o homem maltratado que é, agora, o centro. Quem foi o próximo dele?


Viagem radical

A viagem mais radical que cada ser humano tem de fazer é a da libertação do egoísmo. Começamos esta viagem quando ainda bebés. O bebé recém-nascido é o centro do seu próprio mundo. Crescer é a lenta descoberta de que outros existem e que não existem só para fazer a vontade dele. Por trás do seio há uma mãe. Tornamo-nos plenamente humanos na medida em que aprendemos a ceder o centro a outros.

Para cada um de nós, pois, o maior desafio da vida é deixar de ser o centro do mundo. É uma verdade que se conhece intelectualmente, mas que é muito difícil de praticar. E penso que é particularmente difícil na sociedade contemporânea. A modernidade consagrou a imagem do ser humano como essencialmente solitário, desapegado dos outros, livre de obrigações, descomprometido.



Um Samaritano, ao passar, viu o homem ferido e ao vê-lo teve compaixão

A palavra que traduzimos por “ter compaixão” é uma das mais importantes do Novo Testamento. Significa ser tocado no âmago do próprio ser, nas próprias entranhas. É o choque que nos dá a consciência da presença de um outro.

Em Nova Iorque, foi feita uma experiência com um grupo de seminaristas. No programa de formação para a pregação, pediu-se-lhes que preparassem uma homilia sobre a parábola do Bom Samaritano. Deviam preparar os seus textos e em seguida dirigir-se a pé para o estúdio onde o sermão seria gravado em vídeo. Em certo ponto desse percurso, um actor, representando um homem ferido e maltratado, jazia por terra, coberto de sangue, pedindo ajuda. Oitenta por cento dos seminaristas passaram por ele e nem sequer o viram. Tinham estudado a parábola e feito sobre ela belas composições literárias e, no entanto, passaram ignorando-o. Que teremos de fazer para nos abrirmos aos outros ?



Correr o risco...

A compaixão do Samaritano transtorna os seus planos. Preparara-se para a viagem com comida, bebida e dinheiro. No entanto, usa tudo isso para um fim que não tinha imaginado. Dois denários era muito dinheiro, o suficiente para pagar mais de três semanas de estadia com pensão completa. Dá mesmo o que não tem, o que contava vir a ganhar em Jericó. Arrisca fazer uma promessa em aberto que não sabe onde o levará.


Quando o doutor da lei pergunta: “Quem é o meu próximo?” o que ele pretende é definir as suas obrigações. Quer saber com antecedência o que precisa ou não fazer. Mas a resposta do Samaritano leva-o para um terreno desconhecido. Não pode saber quanto o estalajadeiro vai pedir.


Há um velho ditado que diz: “Se queres fazer rir Deus, conta-lhe os teus planos.”





A verdadeira compaixão transtorna os nosso planos, e lança-nos no imprevisto.»



Timothy Radcliffe, op "A CAMINHO DE JERICÓ"




3 comentários:

Anónimo disse...

Quero dizer-te simplesmente obrigado.
Esse jeito de contar as coisas revela a qualidade do evangelizador.
Um abraço
Calmeiro Matias

Andante disse...

E dói deixar de ser o centro...
Tomar consciência de si próprio é tomar consciência do próximo!
E a tentação é ser "sempre" centro.
Fechar os olhos do coração ao egoísmo, encher-se/me de si próprio e esquecer que o próximo deixei de ser eu para ser ele.

Beijos peregrinos

Anónimo disse...

Muito obrigada Gustavo. Nem imaginas como foi importante meditar esta tua partilha.
Um beijinho
Paula