quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [3] – O GRITO DE LIBERDADE EM MONTGOMERY



“Aceitar passivamente um sistema injusto é cooperar com esse sistema […]. A não-cooperação com o mal é tanto uma obrigação moral como o é cooperar com o bem”
Martin Luther King, Montgomery, 1956




Desde o final da Segunda Grande Guerra, os EUA ocupavam um protagonismo mundial, e no intuito de se demarcarem do comunismo da União Soviética, precisavam de ganhar influência e passar a mensagem ao mundo de um país plenamente democrático. Assim, no período pós-guerra foi aberta a possibilidade dos afro-americanos recensearem-se e poderem votar, e em 1954 o Supremo Tribunal americano decretou o fim da segregação racial nas escolas públicas, declarando-a inconstitucional.

Porém, a mentalidade não tinha mudado. O racismo e a segregação continuavam tão presentes como no século passado, e eram sobretudo mais frequentes nos Estados do Sul. Na prática, estava tudo na mesma.

Martin Luther King, ao lado do ministro Ralph Abernathy, ao chegar à congregação da Avenida Dexter incentivou cada membro a recensear-se e filiar-se no NAACP (Associação Nacional para o desenvolvimento de pessoas de côr), associação à qual King recentemente pertencia e prestava serviço.

Naquele tempo, a segregação fazia sentir-se de muitos modos em todos os estados americanos, mas no caso de Montgomery a opressão racista era pior nos transportes públicos. Os afro-americanos muitas vezes, pagando bilhete, eram logo a seguir expulsos dos autocarros quando andavam lotados. Os lugares da frente pintados de branco reservavam-se aos brancos. Nenhum negro podia lá sentar-se, ainda que fossem vazios. Os restantes (em minoria) pintados de negro eram os únicos disponíveis, a não ser que houvesse um branco no autocarro de pé – nesse caso o negro era forçado a ceder-lhe o lugar. Muitos afro-americanos eram insultados, por vezes espancados, durante essas viagens pois havia motoristas e trauseuntes que gostavam de exibir o seu ódio racial. A polícia e a Câmara nada faziam: era “a normalidade”.

Certo dia, uma senhora afro-americana, Rosa Parks, resolveu desafiar o sistema. Porque se recusara a ceder lugar a um branco, permaneceu sentada até ser detida pela polícia local. No dia seguinte a notícia espalhou-se pela comunidade negra e a indignação rebentou. Distribuíam-se milhares de panfletos a encorajar os afro-americanos a caminharem a pé e boicotarem as viagens de autocarro. Entretanto, uma litigação já tinha sido entregue ao tribunal.

Porém, todos temiam a supremacia racista. Foi aí que apelaram a ajuda do ministro Martin. Tinham-no escolhido por ser moderado e culto, mas ao mesmo tempo ousado, e confiavam na sua diplomacia. Ao formarem o MIA (Associação para o Progresso de Montgomery) nomearam Martin Luther King como líder e cabeça de cartaz para levar as reivindicações da comunidade negra à empresa de autocarros e às entidades públicas da cidade.

Aquele caso inflamara Martin até á flor da pele. Então numa noite, a Associação juntara uma multidão para incentivar a comunidade a um boicote generalizado. Contavam com Martin para um discurso, e Rosa sentara-se a seu lado. Nessa noite, Martin Luther King insuflou esperança e um sentido de dignidade à assembleia como nunca antes visto. Fora como uma lufada de ar fresco numa comunidade deprimida por anos e anos de humilhações.
Passo a transcrever o discurso:

“Sabem, meus amigos, chega uma altura, chega uma altura em que as pessoas ficam cansadas – cansadas de serem segregadas e humilhadas, cansadas de serem pisadas pelos pés de ferro da opressão.
Chega uma altura, meus amigos, em que as pessoas ficam cansadas de serem lançadas no abismo da humilhação, onde experimentam a tristeza de um enervante desespero. (…)
Não temos outra alternativa senão protestar. Durante muitos anos temos mostrado uma espantosa paciência. Por vezes demos aos nossos irmãos brancos a sensação de que gostávamos da maneira como éramos tratados. Mas viemos aqui esta noite para nos livrarmos dessa paciência que nos torna pacientes com tudo menos a liberdade e a justiça.
A grande glória da democracia americana é o direito de protestar por aquilo que está certo.”
[Nessa altura a multidão levanta-se, e muitos gritam-lhe: “continua a falar”. Criava-se uma expectativa no ar, e após uma pausa Martin prosseguiu:]

“Se estamos errados então o Supremo Tribunal desta nação está errado!
Se estamos errados então Deus Todo-Poderoso está errado!
Se estamos errados, então Jesus de Nazaré não passava de um sonhador utópico e nunca desceu à terra!
Se estamos errados então a justiça é uma mentira!
E nós estamos determinados, aqui em Montgomery, a trabalhar e a lutar até que a justiça escorra como uma torrente de água e a retidão como um ribeiro poderoso!”

[Palmas, as vigas do teto abanam. Levantando os dois braços Martin continua:]

“Se protestarem com coragem e todavia com dignidade e amor cristão, quando os livros de História forem escritos em futuras gerações, os historiadores terão de parar e dizer: ‘Existiu uma raça de gente, gente negra, de cabelo anelado como lã e tez negra, de gente que teve a coragem moral de defender os seus direitos. E desse modo injetaram um novo significado e uma nova dignidade nas veias da civilização”

A partir daquela noite a comunidade negra ganhou um ânimo e uma união como raramente se tinha visto. Em Dezembro de 1956 é marcado um encontro entre o MIA chefiado por King e os membros da comissão da cidade. King delineou três exigências à cidade e empresa de autocarros: a contratação de motoristas afro-americanos, lugares para os afro-americanos desde da parte de trás até à frente do autocarro, sem reservas a raças; nenhum negro seria obrigado a ceder lugar.
A empresa de autocarros rejeitou a proposta, exigindo à MIA que recuasse. King, determinado e inflexível disse que não abdicariam dessas exigências pois eram conformes à dignidade dos afro-americanos.

Então, durante um penoso e longo ano, o braço de ferro manteve-se firme entre a Câmara de Montgomery, a empresa de autocarros e a comunidade negra, representada por King. Martin não parava de organizar marchas de protesto, assembleias onde constantemente apelava à resistência e perseverança. Não era nada fácil. Os afro-americanos durante quase um ano, tinham de se deslocar kilómetros a pé, organizavam um sistema de partilha voluntária de carros e táxis, e ninguém apanhava autocarros. Em retaliação, os polícias da Câmara faziam operações stop aos carros de boleia e multavam-nos por coisas insignificantes. Os patrões castigavam e até despediam os seus funcionários de cor quando chegavam atrasados ao trabalho. Mas King mantinha os afro-americanos unidos, alimentava-lhes esperança e determinação.

King incentivou que nas Igrejas voluntários demonstrassem técnicas de não-violência baseadas nas técnicas de Ghandi. Martin dizia: “trata aqueles que te desprezam como entidades sagradas” e lembrava que havia um objetivo maior por detrás deste boicote, pois acrescentava: o objetivo é a reconciliação; o objetivo é a redenção; o objetivo é a criação da comunidade dos bem-amados”; “continuaremos a protestar com o mesmo espírito de não-violência e de resistência passiva, usando a arma do amor”.

A uma dada altura a polícia dispersava os manifestantes e mandava prender aqueles que participavam nas marchas. Martin Luther King que as comandava na linha da frente era preso juntamente com os seus “irmãos”. Recebia telefonemas anónimos e ameaças de morte, mas nada o fazia parar. Sentia no seu íntimo o apelo de Cristo, que estaria sempre com ele, que lutasse sempre pela justiça e a verdade.

Montgomery já andava na boca de toda a América. Tinha-se convertido num enorme movimento cívico organizado e não-violento que nenhuma opressão do mundo podia parar. Na altura, um livreiro branco da cidade dedicou um artigo publicado no jornal local:

“É difícil imaginar uma alma tão morta, uma visão tão cega e mesquinha a ponto de não ser tocada pela admiração da tranquila dignidade, disciplina e dedicação com as quais os negros têm dirigido o seu boicote. A causa deles e a sua conduta têm-me enchido de grande simpatia, orgulho, humildade e inveja. Invejo a sua unidade, o seu bom humor, a sua força moral e a sua disponibilidade para sofrerem por grandes princípios cristãos e democráticos”

Passados meses de provação heroica, a cidade começava a rebentar pelas costuras por causa do boicote: cada vez mais donas de casa apresentavam queixas à Câmara porque as suas criadas negras não apareciam para fazer limpezas ou cozinhar, vendo-se obrigadas a dar-lhes boleia; as lojas da baixa da cidade acumulavam perdas, e a empresa de autocarros já não suportava uma perda de mais de 2500 dólares por dia; os membros do Ku Klux Klan já não assustavam negros e quando apareciam para aterrorizar caiam no ridículo de serem completamente desprezados por um grupo organizado de gente de cabeça erguida e pacífica.


Finalmente, apesar de um atentado à bomba à residência da família King, e tantas outras perseguições generalizadas, a Câmara e a empresa de autocarros não tiveram mais nenhuma saída senão ceder às condições do MIA. Tinha sido estabelecido um marco histórico, comparável à pacífica revolta do sal de Gandhi na índia. Montgomery já não era a mesma, e brevemente a América também não…

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