quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A BOA NOTÍCIA DE UM REINO[2]



O Baptismo de João despertara em Jesus a consciência de ser o profeta do Reino de Deus. Este Reino Messiânico passa a ser a fonte dos seus critérios, das suas expectativas e escolhas, a ponto de identificar-se com toda a sua vida. Por isso, um Reino que não teve nada de abstracto, de dogmático ou esotérico. É inaugurado nele, incarna nele, e nele manifesta-se em plenitude, na lógica e nas acções que o constituíram como Messias e Salvador:


- Chamou discípulos e nomeou doze

A primeira coisa que Jesus se deu conta, ainda antes de iniciar a sua missão, era que o Reino de Deus não se construía sozinho mas em dinâmica fraternal. Ele sonhava constituir uma rede humana com a força suficiente para derrotar as “forças diabólicas” do mundo, incarnadas nos ritmos e dinâmicas que impediam a marcha da humanização. Para Jesus não era tanto a máxima da “união faz a força” que valia, mas confiava que era a própria força salvadora de Deus que agia com eficácia na Comunhão humana.


Um facto inédito no seu tempo era que alguém escolhesse discípulos, uma vez que os mestres e rabis é que eram escolhidos pelos discípulos que decidiam segui-los. Contudo, ele não hesita em convocar colaboradores e seguidores para o acompanhar. Um sinal muito próprio dessa escolha é a eleição dos Doze de entre os discípulos, dado que são eles a formar um novo Israel. Assim a comunidade dos Doze reúne a força simbólica das doze tribos de Israel que são refundadas para constituir um Povo construtor do Reino. Jesus reúne-os para proclamar a Boa Notícia do Reino de Deus.


- Perdão dos pecados e proximidade com os pecadores e marginalizados

Se para Jesus o Reino de Deus é uma Boa Notícia, então tinha de chegar primeiramente àqueles cuja vida não era “boa notícia”; e que estava sobretudo marcada pelo sofrimento e o abandono. Dirige-se a prostitutas, publicanos, pobres e marginais: gente de coração partido, encadeados e tristes, esmagados pelo fardo da culpa que a sociedade lhes impunha. A compaixão de Jesus move-o a procurar amizade junto destes a quem chama de Irmãos, anunciando pela sua proximidade um Deus que proclama o Perdão dos pecados. Perdão que traz a libertação das amarras da culpa, e manifestado nas atitudes de misericórdia e amor que derrotam todas as forças do mal, todos os “demónios” da violência, do egoísmo, indiferença e solidão. Um Perdão que faz acontecer uma acção terapêutica, e que nos evangelhos encontra expressão nas curas e milagres: "os cegos vêm, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa Nova é anunciada aos pobres" (Lc 7,22)


Esta Gente de má fama não era convidada a participar nas festas religiosas do seu povo, estavam impedidos de entrar nas sinagogas, e proibidos de prestar culto no Templo. Pura e simplesmente era-lhes negado o acesso a todos os rituais de purificação e de bênção. Jesus contudo escandaliza tudo e todos sentando-se à mesa com eles. E é nessas refeições de convívio com os “não-convidados” do seu tempo que ele manifesta as celebrações antecipadas do Banquete do Reino a acontecer. Jesus compara o Reino de Deus a um grande Banquete onde todos estes últimos seriam os primeiros a sentar-se na mesa, e o próprio Senhor os haveria de servir! Chegara o tempo da boda, porém, para surpresa e indignação de muitos, estava aberto primeiramente para os “ímpios”.


- As Bem-Aventuranças: poder transformador de Deus na história


A predilecção de Jesus para com os aflitos e rejeitados está especialmente patente na sua proclamação das Bem-Aventuranças, aquilo a que podemos designar como a declaração fundamental ou a “Carta Magna” do Reino de Deus. Ela constitui uma novidade absoluta em toda a tradição bíblica, e constituí o princípio do fim das velhas lógicas da realidade.

Para a grande maioria dos judeus do seu tempo há muito que a injustiça dominava o mundo. Constatam que eram sempre os fracos e justos que sofriam nas mãos dos poderosos e ditadores cuja vida era próspera. E ainda que muitos aspirassem a ideais como a paz, a justiça, e a liberdade, reconheciam que não passavam disso mesmo: ideais de uma utopia. Porém, Jesus perante esse mundo vencido por forças opressoras anuncia um acontecimento salvador, convertendo a utopia em realidade:"Felizes os pobres porque deles é o Reino! Felizes os famintos porque serão saciados. Felizes os que choram porque serão consolados. Felizes os que sofrem por amor da justiça..."

Eis uma mensagem nova que supera a antiga tradição sapiencial onde se proclamavam os ditosos como “os bonzinhos”, ou os eticamente respeitados. Os bem-aventurados já não são aqueles que “comem do trabalho das suas mãos”, “os que se guardam dos vícios”, ou os “virtuosos que têm uma vida honrada”aqui estamos claramente diante de um salto tremendo, e uma lógica que vai além de um mero código moral! Com a proclamação das Bem-Aventuranças Jesus declara que chegou um tempo novo. Um tempo de libertação de toda a tirania e angústia, onde a soberania de Deus se sobrepõe a todos os sistemas injustos do mundo: a partir de agora o tempo dos opressores tem os dias contados, por isso “ai de vós” (Lc 6,25-27)

Assim vemos que a justiça das Bem-Aventuranças de Jesus não é imparcial, mas preferencial: aquela que toma partido em primeiro lugar pelos débeis, os desvalidos, e os pobres, e portanto a mesma que marca o fim de todos os privilégios dos que se elevavam à sua custa. Uma justiça eficaz que não é limitada nem retardada pelas nossas imperfeições humanas, mas antes instaurada e restaurada pelo poder salvador de Deus: "O que é impossível aos homens, é possível a Deus" (Lc 18,27). Sim, são as Bem-Aventuranças que anunciam um poder que transforma a história humana para “virar do avesso” todas as desigualdades e injustiças; por isso Jesus nunca as proclamou como um prémio de consolação para uma “vida no Além”. Pelo contrário, anuncia nelas a Boa Notícia de um poder real e concreto que já chegou, que está aí a libertar e salvar, que está aí a actuar, aqui e agora, nos seus gestos e atitudes.


- O mandamento do Amor

Na base das Bem-Aventuranças e na proximidade de Jesus para com os oprimidos está o mandamento do Amor. Já não são os incensos, os sacrifícios, o culto, as normas da Lei, ou as penitências que valem por si mesmas. Jesus reúne toda a Lei e profecia no Amor a Deus e ao Próximo como caminho de vida, e critério último de construção do Reino. Neste Amor há também um elemento novo: a noção de Próximo. A noção judaica de próximo era o “meu vizinho”, o “meu compatriota judeu”, o “da minha raça”, o “da minha tribo” ou “estirpe”. Porém, Jesus abre agora as portas às exigências desse Amor novo, amor manifestado na universalidade e na super-abundância da Graça: convida ao amor pelos inimigos (Mt5,44) e estrangeiros, à superação da Lei de Talião: "ollho por ollho, dente por dente" (Mt5,39), e à iniciativa no perdão fraterno (Mt 5,24).


Acabaram as fronteiras do sagrado e do profano, terminaram os limites da razoabilidade e do “bom senso”, e esgotaram-se os critérios moralistas para distinguir “os próximos” dos “não próximos”. A partir de agora o próximo é aquele de quem me aproximo por iniciativa e bem-querer, disposto ao risco e ao imprevisível, sem reservas! Tudo isso é a proposta de uma nova Ordem de relações marcadas pela Graça de Deus que inaugura um jeito novo de amar: “amai-vos como eu vos amei”.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

A BOA NOTÍCIA DE UM REINO[1]

Esta semana decidi mudar um pouco o programa do costume. Interrompo as minhas reflexões habituais para deixar aqui um tema que muito gosto me deu trabalhar e meditar no último fim de semana de encontro JR: o Reino de Deus. Algo que não nasceu apenas do meu trabalho individual, mas fruto do poço comum da minha comunidade redentorista. Apresento-o assim, na expectativa de saborearem o mesmo gozo que me deu prepará-lo...



Nos tempos do reinado de Herodes, tetrarca da Galileia, apareceu um homem que anunciava a proximidade da última hora, a hora da intervenção definitiva de Deus em Israel. Seu nome era João e pregava um baptismo de purificação que prepararia o povo para a chegada iminente de Deus. Segundo ele, o mundo estava prestes a ser julgado e não bastava ser filho de Abraão (judeu) para escapar a esse juízo. Yahvé viria para destruir os pecadores e somente os que recebessem o baptismo de penitência se salvariam, o dia terrível da Ira de Deus estava próximo:

“O machado já está posto à raiz da árvore: a árvore que não produzir bons frutos será cortada e jogada no fogo.” (Lc 3,9); “Já empunha a pá com para limpar a sua eira: o trigo o recolherá no celeiro, e queimará a palha num fogo inextinguível” (Mt 3,12).

Entre muitos ouvintes de João, encontrava-se um jovem Nazareno que o seguia de perto sentindo-se interpelado pela sua mensagem, e ao escutá-lo, desperta para algo novo que o vai acompanhar até ao fim da sua vida. Jesus não só experimentava no seu íntimo a novidade que terminara o tempo da espera de Israel, como também confiava com uma certeza infalível que o Dia de Yahvé não chegaria como dia
de condenação, mas como dia de misericórdia: Deus está a chegar com um Reino de paz, justiça e alegria! O seu Abba virá, e sem demora, para enxugar as lágrimas do seu povo.


É firmado nesta esperança que Jesus adere à fila dos penitentes e aproxima-se do rio Jordão para receber o baptismo de João. Deixa-se baptizar, não para escapar de uma maldição iminente, senão para se sentir membro do resto fiel, daqueles que aguardavam ansiosamente a vinda libertadora de Yahvé. A partir daquele dia tudo mudou para aquele carpinteiro da Galileia. Sentia-se enviado a proclamar que Deus finalmente viria governar, guardando no coração a profecia de Isaías: Que formosos são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que apregoa a boa-nova, e que proclama a salvação! Que diz a Sião: “O rei é o teu Deus! (Is 52,7). Jesus inspirou-se na missão de Consolação de Isaías e ele próprio assume-se como mensageiro da Boa Notícia: Deus está connosco como Rei e vem como Salvador de Israel! Enquanto João esperava na intervenção divina, Jesus vai passar a agir para fazê-la cumprir. Para aquele Nazareno chegara o tempo de uma nova criação: o Reino de Deus estava já a acontecer…

terça-feira, 18 de novembro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS[7]



- Primeiros e últimos -


As semanas que se seguiram após a partida de Antioquia da Síria foram intensas…

Saulo e Barnabé assumiam a missão de enviados (apóstolos) pelos judeo-cristãos antioquenos para fecundarem a semente da Boa Notícia por todo o Império e até onde os pés os levassem. Confiavam que o Espírito do Vivente acompanhava-os, investindo-os com a dynamis (força) para abrir uma nova página na história do seu povo, e quem sabe, também de outras nações…


Descem primeiro à região da Selêucia na costa mediterrânica, navegando depois para a ilha de Chipre, terra natal de Barnabé. Chegando à cidade de Salamina, ficam lá por algum tempo com a comunidade recentemente formada, e anunciam nas outras sinagogas judaicas a Boa Notícia da chegada do Cristo-Messias e a instauração definitiva do seu Reino, prometido a Israel desde os patriarcas. A sua proclamação naquela região já era tão célebre que eles, chegando a Pafos, despertaram não só a curiosidade de muitos judeus, como também de alguns cidadãos romanos. Entre estes destacava-se o governador Sérgio Paulo que imediatamente os chamou pessoalmente para escutar a Boa Nova acerca de Jesus. Este “acreditou, maravilhado com o ensinamento do Senhor” (Act13,12).
E é ali mesmo, em Pafos, que pela primeira vez o nome de Saulo é traduzido na língua latina por Paulinus (Paulo).


Nas sinagogas que passavam, os dois tinham sempre o cuidado de colaborar mutuamente, deixando um testemunho de unidade e comunhão em cada vez mais comunidades que formavam entre os judeus. Talvez Barnabé fizesse um primeiro anúncio, deixando a Saulo (Paulo), rabino de formação, a tarefa delicada de justificar pelas Escrituras este Messias tão surpreendente e tão diferente de tudo o que os seus compatriotas esperavam. Para alegria de Barnabé, Paulo revelava como era digno da fama que recebera desde Damasco, tomando progressivamente a dianteira na proclamação da ressurreição do Nazareno.

Mais tarde partem de Chipre em direcção a ocidente e desembarcam em Perge, na costa norte do mediterrâneo. Daí percorrem mais de duzentos quilómetros até chegarem finalmente à grande cidade de Antioquia, situada na zona fronteiriça da Pisídia (actual Turquia). Naquela metrópole estava prestes a ocorrer um incidente que traria um novo impulso ao movimento da Boa Notícia de Jesus…


Num dia de sábado, os dois companheiros dirigem-se a uma das mais frequentadas sinagogas da cidade. A seguir às leituras dos textos da Torah e dos profetas, o chefe da sinagoga convoca solenemente um dos irmãos presentes para comentar a Palavra escutada. Paulo entretanto toma a iniciativa e, levantando-se do meio da assembleia, começa a proclamar a ressurreição de Jesus. Como era hábito, instala-se o alvoroço. Entre a assembleia havia judeus que aderiam à Boa Notícia, como os outros, que indignavam-se, rejeitando-a imediatamente por pôr em causa as tradições. Apesar de tudo, a maioria dos que se encontravam na sinagoga aceitaram com agrado aquela Notícia inédita. Tal foi o aparente “sucesso” do kerygma de Paulo, que à saída muitos pediam a ambos que continuassem a ensinar sobre Jesus no sábado seguinte.
Todavia naquele dia, a sinagoga recebia também um outro grupo, mais oculto e restrito, para quem o euangelion constituía certamente uma Novidade ainda maior.


Naquela cidade, como em tantas outras da diáspora, abundavam não poucos pagãos atraídos pelas “virtudes” e os ensinamentos do monoteísmo judaico. A maior parte deles concentrava-se nas entradas das sinagogas aos sábados; muitos homens em particular, apesar de iniciados nalguns rituais judaicos, ainda lhes faltava dar o último passo para entrarem como membros plenos no judaísmo: a circuncisão. Contudo, poucos eram os que na idade adulta aceitavam submeter-se a esse estigma físico. Por isso, ainda que interessados por escutarem a doutrina da Lei e dos profetas, estes “prosélitos” permaneciam lá atrás, recuados na periferia daquelas assembleias numerosas. Lá permaneciam como os últimos ouvintes, quer não só por serem estrangeiros, mas sobretudo porque na sua maioria eram incircuncisos, e por isso não plenamente convertidos ao judaísmo.

Para estes últimos, aquele dia fora inesquecível…


Paulo falara-lhes do euangelion de um homem, um Nazareno que acolhia prostitutas, pastores, publicanos, indigentes, e toda a espécie de pecadores públicos. Um judeu Nazareno que questionava muitos dos costumes judaicos, e surpreendentemente se dava com “más companhias”, inclusive os próprios pagãos romanos e outros tantos que habitavam na Galileia dos gentios. Esse judeu atrevera-se a dizer que todos estes “últimos do mundo” eram os “primeiros no Reino”. E porque os amara e defendera até ao fim foi rejeitado em Jerusalém e violentamente morto fora dos seus muros como herege! Por tudo isso, Paulo proclamara-o como o Messias não só do Judeus, mas de todos os que acolhessem de coração aberto esta Boa Notícia.


Sim, aquela Boa Novidade fazia tanto sentido para aquela gente ignorante da Lei e ainda fora da Aliança, que sentiam-se claramente os seus primeiros destinatários naquela assembleia! Sentiam-se amados e acolhidos por esse Yeshu tão vivo nas palavras de Paulo. Aquele Messias judaico trazia um reino de liberdade e Justiça não só para os da sua raça, mas para todos, e sobretudo para eles, os “últimos” entre os Judeus. Sem demora, começam a falar com familiares, sócios, amigos, e outros gentios conhecidos que encontravam para escutarem a Boa Nova anunciada pelos dois visitantes que tinham vindo de tão longe. Os cochichos não paravam de circular e já se espalhavam naquele quarteirão da cidade.


No sábado seguinte, para surpresa dos judeus, rebenta a confusão na sinagoga. Jamais se viram tantos pagãos à porta. Alguns, mais atrevidos, talvez até tentassem irromper ao empurrão pela assembleia adentro, ansiosos por escutar de perto as Novas de que tanto se falara. Porém, como sempre, os pagãos eram expressamente proibidos de entrar. Surpreendentemente parece até que alguns judeus piedosos, sempre acostumados aos habituais “lugares de destaque” já nem conseguiam furar pelo meio daquela multidão de gente para entrar na sinagoga. Estando tudo à pinha naquele lugar, entretanto chegam os dois enviados de Antioquia.


Paulo e Barnabé, surpreendidos, fitam o olhar um no outro, e percebem finalmente o que se passava ali. Paulo então, ali mesmo no meio da praça e em público, toma a palavra e continua a ensinar o Euangelion do Nazareno a todos: judeus, pagãos e “prosélitos”. Entretanto, escutam-se vozes de protesto. Muitos dos judeus estavam furiosos, e aqueles dois visitantes eram os responsáveis pelo estardalhaço…

“Os Judeus, ao ver a multidão, encheram-se de inveja e contradiziam as palavras de Paulo com insultos.” (Act 13,45)

Paulo e Barnabé estavam chocados, especialmente Paulo. Este reconhecia naqueles judeus o mesmo nacionalismo desenfreado que defendera uns
anos antes. Entristecia-se por ver aqueles seus irmãos, depositários da Promessa, a desprezarem o Euangelion da nova era messiânica. Como resposta à rejeição da maioria da assembleia judaica, os dois lançam então uma repreensão àquela gente irada: “Visto que rejeitais a Boa Notícia, a partir de agora nos dirigiremos aos pagãos”


Os dois abandonam a vizinhança da sinagoga com os gentios, “prosélitos” e até alguns judeus tocados por aquele anúncio ousado. Nos dias que se seguiram, reuniram-se nas suas casas e noutros lugares para os prepararem para a formação de uma das primeiras comunidades de pagãos convertidos à Boa Notícia.


E assim o Espírito de Deus encontrava espaço de acção para fazer acontecer a Universalidade do Reino. Vivia-se de facto um tempo como nunca o mundo tinha assistido antes: “felizes os olhos que vêem o que vós vedes, pois vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vós vedes, e não o viram; e ouvir o que vós ouvis, e não o ouviram.” (Lc 10,23-24). Iniciava-se uma Nova Aliança, selada pela presença de um Espírito que “sopra onde quer”, e para Paulo e Barnabé tudo tornara-se muito claro: ninguém tinha de ser necessariamente judeu para tornar-se Cristão!

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

JESUS, O REINO, E A IGREJA


Enquanto não vem o próximo post, gostaria de partilhar convosco uma das minhas leituras. Este fragmento de texto vem ao encontro da origem e fundamento da Igreja, que é precisamente o tema que tenho vindo a expor. Por isso não podia deixar de passar este pequeno testemunho do Padre Anselmo Borges.




A prova de que Jesus não fundou nem quis fundar uma Igreja enquanto instituição é que ele viveu no horizonte da escatologia apocalítica, portanto, na convicção da irrupção iminente do Reino de Deus. Agora, quando irromper o Reino de Deus, Deus mesmo vai reinar sobre o seu povo, porque o Reino de Deus é o próprio Deus. Deus vai transformar radicalmente a história de imediato, levando à consumação plena e final a sua obra da Criação. Do ponto de vista histórico há hoje consenso em que Jesus esperou o fim iminente e a transformação radical da presente situação do mundo. (…)


Depois da ressurreição, os discípulos, que após a morte de Jesus na Cruz se dispersaram, voltando às suas tarefas normais, reuniram-se outra vez em Jerusalém e foram formando comunidades congregadas pela fé em que esse Jesus, o Messias de Deus, voltaria em breve para instaurar o Reino de Deus. Portanto, também as primeiras comunidades cristãs viveram dessa profecia, dessa fé e dessa esperança da chegada iminente do Reino de Deus. (…)


Não há duvida que as comunidades de São Paulo se legitimaram democrático-carismaticamente. Como é um facto que as primeiras comunidades cristãs se reuniam em casas particulares e celebravam a Eucaristia – o banquete do amor e testemunho da verdade até ao fim – recordando a última Ceia e as várias refeições de Jesus, e quem presidia era o dono ou dona da casa. Isto significa que todos os ministérios da Igreja actual, nomeadamente o ministério episcopal e o ministério sacerdotal, não foram criados por Jesus, mas pela Igreja. Como escreve Hans Küng, dado o adiamento da Segunda vinda de Jesus, foi por motivos práticos que se impôs mais tarde uma “hierarquia”, uma “hierarquia ministerial”, composta por bispo, presbíteros e diáconos.


Mas a partir dos documentos do Novo Testamento, não se pode falar de uma “instituição” desta hierarquia ministerial e ordenada por Cristo ou os Apóstolos. Por isso, “apesar de toda a ideologia eclesiástica”, também não se pode afirmar que essa hierarquia seja “imutável”. Ela é “resultado”- talvez inevitável – de “um desenvolvimento histórico”, de tal modo que, embora a Igreja possa ser assim organizada, “não tem que sê-lo”.


Portanto, a Igreja dispõe dos ministérios livremente. Pode mantê-los, aboli-los, mudá-los. Nisto, o princípio tem de ser: não é a comunidade que tem de orientar-se pelas necessidades do ministério, mas o ministério pelas necessidades da comunidade. Os ministérios existem para a comunidade, não a comunidade para os ministérios. Assim, mesmo para presidir à Eucaristia, o pressuposto não tem de ser forçosamente uma ordenação sacra, pois é suficiente uma missão, que poderá ser temporária e conferida a um homem ou a uma mulher, casados ou não.”


Anselmo Borges, “Religião - Opressão ou Libertação?”, p.157-158.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS[6]

- Novo Mundo -



Eram cada vez mais numerosas as comunidades suscitadas pelo kerygma da ressurreição de Jesus. E não parando de surgir um pouco por aqui e por acolá, já chegavam a regiões e culturas além daquelas adjacentes à Palestina…


Fundadas pelos judeus da diáspora, muitas delas gozavam de total liberdade frente aos costumes tradicionais da Lei e o Culto. Estes irmãos, também conhecidos como helenistas, possuíam uma mentalidade mais aberta que os seus homónimos palestinenses, os quais ainda não tinham abandonado certos costumes judaicos apesar de acolherem a Boa Nova. Na verdade, alguns destes nazarenos continuavam a frequentar o Templo, e permaneciam fortemente enraizados aos ritos antigos.


Como já vimos, a maioria das novas comunidades foram fundadas pelos fugitivos de Jerusalém, pela altura da grande perseguição iniciada com a morte de Estevão. Se Filipe escolheu a Samaria como território do seu anúncio, não faltaram também helenistas que levaram o Euangelion a outros destinos como missionários itinerantes.
Entre os anos 37 e 42 já se contavam comunidades fundadas em Cesareia, Lida, Fenícia, Chipre e Antioquia.


A comunidade de Jerusalém, atenta a esta vaga de expansão, decide enviar Barnabé à longínqua cidade de Antioquia para lá prestar assistência à comunidade nascente. Barnabé, “homem bom, cheio de Fé e do Espírito Santo” (Act 11,24), era já reconhecido na cidade santa pela dedicação à comunidade. Proveniente da linhagem dos levitas do Templo e helenista descendente do Chipre, participava assiduamente na comunhão de bens e na vida fraterna com os nazarenos.


Antioquia da Síria destacava-se como uma metrópole célebre no mundo antigo. Estrategicamente situada entre o Mediterrâneo, Arménia e a Pérsia, servia de ponto de passagem das mais variadas rotas mercantis. Conta-se que nessa altura a cidade já rondava cerca de quinhentos mil habitantes, formando um “caldo” cultural e étnico como muito poucos naquela época. Situada na fronteira entre os mundos ocidental e oriental, Antioquia acolhia numerosos estrangeiros como os persas, cipriotas e outras minorias, dentre as quais se destacavam também os judeus. Foi precisamente no seio dessa colónia judaica que o Euangelion se propagou na cidade.


Quando Barnabé chega a Antioquia rapidamente assume uma diaconia (serviço) exemplar e aceite por todos. O seu pensamento estava próximo dos helenistas, e por isso, é acolhido por estes sem reservas; e simultaneamente, a sua ex-condição de levita de Jerusalém conferia-lhe também a autoridade necessária para lidar com os judeus mais conservadores das antigas tradições.


Porém, Com o crescimento da comunidade, Barnabé estava necessitado de novos colaboradores. Tendo ouvido falar de Saulo, já famoso em Jerusalém, dirige-se ao seu encontro em Tarso. A partir de então, Saulo é conduzido por Barnabé a Antioquia. Lá permanecem por um ano, amadurecendo e aprofundando as suas experiências de discípulos. Da proximidade entre eles nascia uma forte amizade, fruto da identidade que partilhavam nas atitudes e opções pelo anúncio do Reino. Saulo admirava o exemplo de Barnabé: um homem de mentalidade conciliadora e também apaixonado pela Boa Notícia.


Ambos continuam “instruindo uma comunidade numerosa” (Act 11,26) num ambiente onde a língua predominante era o grego. É então neste meio helenizado de Antioquia que muitos cidadãos começam a ouvir falar de um nome inédito: os judeus piedosos que rejeitavam o Euangelion dirigiam-se com desdém aos membros da nova comunidade, apelidando-os de Christianoi (CRISTÃOS). Estes irmãos, segundo eles, tornaram-se infiéis à antiga Aliança e à Lei de Moisés por causa do “falso” e “escandaloso” Messias que proclamavam; o seu “Cristo”.


A seita judaica dos nazarenos ganhava progressivamente um rosto distinto e com um novo alcance. A Boa Notícia de Jesus já não era somente proclamada nas pequenas aldeias e vilas do meio campesino. A grande cidade de Antioquia converter-se-ia no novo pólo de irradiação de um movimento que Saulo e Barnabé eram pioneiros. Ambos decidem partir de Antioquia, decididos a fundar novas comunidades, convictos que agora pisavam um novo mundo, dando os primeiros passos para o advento do CRISTIANISMO

terça-feira, 4 de novembro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS [5]


- De Damasco a Jerusalém –


O caminho que conduziu Saulo ao Paulo que conhecemos hoje foi fruto do ambiente que se respirava naqueles tempos e sobretudo das mediações excepcionais que recebeu. O seu processo de amadurecimento estava longe de terminar, e a fuga para a Arábia marcara somente a primeira etapa do “atleta de Cristo” (Flp 3,14).

Decorria o ano 39…

Saulo após algum tempo, e com a garantia dum clima favorável ao seu regresso, retorna a Damasco e reencontra-se com a comunidade que jamais esquecera. Dirigindo-se com eles ao lugar onde se reuniam, celebram novamente juntos a fracção do pão. E aí, no memorial da vida do Mestre, o jovem de Tarso dá graças por agora tomar parte nela, por partilhar o melhor de si, pronto a dar-se pela causa do Reino. Saulo estava preparado para o próximo passo, envolvido e comprometido por inteiro na vida renovada que recebera das mãos dos seus compatriotas, os helenistas damascenos.


Por eles conhecera e reconhecera o seu Vivente, o seu amado. Agora não existiam mais os véus ritualistas, a miopia das minúcias normativas, ou as escamas obscuras do nacionalismo. Ele via claramente e tocava realmente o ressuscitado na proximidade íntima e fraternal daquela comum-unidade, com a consciência de sentir-se também pertença do Cristo, seu discípulo fiel, seu mensageiro. A missão de Saulo inaugurava-se aqui, e no seio daquela nova irmandade escutava a voz do Mestre que lhe sussurrava:
“Segue-me! Persegue-me agora por Amor”…



Decidindo permanecer na cidade por mais algum tempo, a comunidade incumbe-lhe a tarefa do ensino nas sinagogas. Logo desde muito cedo, ao observarem-no em missão, os irmãos de Damasco vão-se dando conta que nele havia um karisma especial. A sua Fé, paixão e anúncio conferiam-lhe uma autoridade fora do comum. Muitos até eram unânimes em reconhecer no Kerygma de Saulo uma novidade: a eloquência, coerência, e sobretudo o conhecimento das Escrituras, impressionava tanto judeus como gregos até ao ponto de alguns deles aderirem ao Euangelion. Em pouco tempo Saulo converteu-se numa revelação que ganhou fama além de Damasco.


As notícias não paravam de correr pela Palestina. Á comunidade de Jerusalém e a outras próximas chegavam novas: “aquele que antes nos perseguia, agora anuncia a Boa Notícia da fé que antes tentava destruir”(Gal1,23). Era certamente uma notícia invulgar, e ainda que recebida por alguns com incredulidade, estava todavia carregada de esperança. Era acima de tudo uma notícia densa de Boa Novidade para aquelas comunidades da Judeia e da Galileia, oprimidas tantas vezes pela incompreensão e intolerância dos outros judeus.


Que impacto seria, escutar que Saulo “o terrível fariseu e inquisidor de Jerusalém” convertera-se em nazareno. É certo que alguns talvez ainda guardassem a vivida memória da sua perseguição, os seus interrogatórios, invectivas e ameaças. É certo que alguns tinham experimentado até a condenação de familiares pelas suas mãos. Porém, os sinais do Reino que Saulo operava em Damasco iam diminuindo as hipóteses de dúvida, e provavelmente, um pouco por toda a Palestina, as comunidades celebravam o memorial da fracção do pão com este espírito de comunhão e encanto:


“Nós te Louvamos e bendizemos Deus da Promessa e da Aliança! Agradecemos-Te, querido Abba, o Dom da Vida de Yeshu, nosso Meshiah [Messias] e Salvador…nosso amigo…nosso Irmão! A sua fidelidade superou todas as esperanças até ele se revelar como Novidade messiânica! Novidade que não cessa de acontecer na nossa história, e na vida do nosso povo, Israel, e por isso exultamos de alegria pela Boa Notícia de nosso novo irmão Saulo: outrora fariseu que nos perseguia agora foi alcançado pelo teu e pelo nosso ressuscitado! Sim Abba, somos felizes porque Saulo encontrou-te e reconheceu-te no rosto do nosso amado Yeshu de Nazaré!
Por este querido irmão nos consagramos, para que ele, agora fortalecido, anuncie aos nossos compatriotas e com todo o desassombro a Boa Notícia do Reino, esperado desde a criação do mundo, anunciada a David, e proclamada pela boca dos profetas. Estamos todos com ele, o nosso Saulo, unidos no mesmo amor e fraternidade do Mestre, e com ele esperamos a vinda definitiva do teu Reino!”


Entretanto, em meados de 42, o jovem de Tarso sente-se agora decidido a subir a Jerusalém, quem sabe, curioso por conhecer a primeira comunidade da Via do Senhor e nela dar o testemunho pessoal da sua conversão. Talvez estivesse igualmente ansioso por saber como foi a experiência pascal dos primeiros discípulos. Sobre todos os motivos possíveis, havia porém uma certeza naquela decisão: a paixão de Saulo pelo seu ressuscitado fazia-o mover-se, caminhar, até correr para o anunciar aonde fosse preciso. Não podia parar, e a cidade de Damasco agora tornara-se demasiado pequena para proclamar o kerygma do Vivente de Nazaré, o Cristo.


Chegado a Jerusalém encontra-se com Pedro e Tiago e lá permanece por quinze dias (Gal1,18-20). Tiago, também conhecido como "Irmão de Jesus", não era nenhum dos doze mas alguém de relevo naquela comunidade, mais um dos que tinham feito a experiência pascal com o Vivente de Nazaré. Saulo reúne-se com Pedro escutando com fascínio os seus episódios da vida comum com Jesus, o modo como os seus olhos se abriram ao reler as Escrituras, e a partir daí como ele e os seus companheiros em reunião, tinham vivido o primeiro encontro com ele. Jesus afinal estava Vivo, com eles, presente de forma nova, vitoriosa e plena; Saulo agora saboreava como tudo tinha mudado a partir dali, e tal como antes, não tinha dúvidas: a ressurreição era o núcleo da Boa Nova do Reino, da nova ordem iniciada por um Vivente e Messias, o Cristo, permanentemente re-suscitado a partilhar tudo o que recebera do Abba aos seus irmãos e discípulos.


Saulo saboreava esse testemunho de Pedro com exultação, porque ele mesmo experimentara-o também na carne! Experimentara que a visão do ressucitado tinha como ponto de partida todas as promessas das Escrituras, e como ponto de chegada a certeza de que a sua presença permanente não era individual, mas confirmava-se na derradeira proximidade da Philadelphia (amor entre irmãos) com o Dom do Espírito. Assim testemunharia mais tarde aos Coríntios:


“Antes de tudo, transmito-vos aquilo que eu mesmo recebi: que Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras, e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras, apareceu a Cefas, e depois aos doze; a seguir, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez (…); em seguida, apareceu a Tiago e depois a todos os apóstolos. Por último apareceu a mim, …” (Cor 15,3-8)


Enfim, agora Saulo partia de Jerusalém, feliz pelos testemunhos de Pedro e Tiago. Confirmara-os pelo testemunho da sua conversão, e ao mesmo tempo, também saía confirmado por eles na sua missão, como verdadeiro irmão de Yeshu, discípulo que também o vira e reconhecera. E nesta alegria serena, Saulo decide regressar à sua cidade natal a fim de lá também anunciar o Euangelion.


Lá, em Tarso, não tardaria a receber uma visita de alguém que mudaria o rumo da sua história, e o haveria de preparar como futuro apóstolo dos gentios