terça-feira, 28 de outubro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS [4]


- O homem novo -


Nascer de novo, nascer novo… a experiência pascal de Saulo era profunda e marcara-o a ferro e fogo. O encontro com o Nazareno ressuscitado apanhara-o como uma espada afiada que penetrava-lhe o fio da vida a ponto de rasgá-la em dois momentos: o “antes” e o “depois”… a luz que encontrara no seu íntimo era tão ofuscante que convergia num pólo de atracção invencível, impulsionando-o para um salto qualitativo, um seguimento…porém, seguir aquela luz exigia também superar o túnel escuro e tenebroso das lógicas antigas.


Aquele jovem sentia-se ainda envolvido numa luta interior, dividido entre o velho fariseu que ainda o habitava e o novo seguidor do Nazareno que inesperadamente emergia. Romper com os princípios e tradições farisaicas implicava sobretudo uma ruptura de esquemas mentais dominantes. Não era tarefa nada fácil, e como se não bastasse havia perguntas que não cessavam de atormentá-lo: “E agora? O que fazer? Para onde, como, e com quem?” Experimentava assim uma crise intensa que o suspendia num estado de vertigem, conflito e instabilidade. Sentia-se como um cego que desesperadamente procurava apoio.

“Saulo levantou-se do chão e, ao abrir os olhos, não enxergava…” (Act 9,8)

Na verdade, sozinho, Saulo jamais estaria capacitado a alcançar um outro paradigma, uma nova coerência de ser e de viver. O encontro com o ressucitado tinha apenas assinalado o início de uma longa etapa, por isso a sua conversão não teve nada de espontâneo ou automático nem se deveu a um “acto mágico”. Foi antes o resultado de um processo, um caminho catecumenal mediado por um contexto propício: a própria comunidade dos nazarenos de Damasco! Saulo foi então “conduzido pela mão” pela mesma comunidade que tencionara destruir. E lá permaneceu o tempo suficiente até lhe “caírem as escamas dos olhos”. Para isso foi fundamental a intervenção privilegiada de Ananias. Este discípulo de Damasco tornara-se assim no principal mediador da acção da Ruah em Saulo: “Irmão Saulo, o Senhor Jesus me enviou, aquele que te apareceu quando vinhas, para que recuperes a visão e te enchas do Espírito Santo” (Act 9,17)




Paciente e de forma muitas vezes sofrida, como que gemendo as dores de um parto, Saulo reconstruía-se com os critérios da fraternidade que vivia com os nazarenos. A pouco e pouco, este jovem renascia robustecendo-se na Fé, na alegria e na força do Euangelion. E neste caminho de conversão, reformulava também toda a sua visão da Lei e da Antiga Aliança à luz dos preciosos estudos rabínicos que recebera. Assim, a Boa Nova do Galileu de Nazaré adquiria para ele um sabor de confirmação que mais ninguém ainda conhecia, nem mesmo os primeiros discípulos. A re-leitura de toda a história do seu povo com o Deus de Israel harmonizava na perfeição com a vida, as opções e as palavras do ressucitado! Tal revelação não podia permanecer com ele, sentia-se compelido a partilhar esta Boa Notícia a qualquer custo…


Não podendo mais conter o entusiasmo “logo se pôs a proclamar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus [Messias]” (Act 9,20). Como retaliação, alguns judeus que o escutaram decidiram matá-lo porque aquele anúncio confundia-os. Talvez lhes perturbasse mais ainda ouvirem estas coisas dum ex-fariseu, um ex-inquisidor dos nazarenos. Isso sim, confundia-os e assustava-os de verdade! Sem outra alternativa, os discípulos de Damasco planeiam a fuga de Saulo. Procurando evitar fazê-lo sair pelos portões vigiados da cidade, descem-no num cesto pelos seus muros. Assim Saulo parte para longe, retirando-se por algum tempo para o território da Arábia…





A experiência pascal de Saulo foi talvez a mais radical que alguma vez conhecemos em toda a história da salvação. O jovem que se consagrou como instrumento de morte aos nazarenos, convertera-se para se tornar em breve num “instrumento escolhido para difundir meu nome entre pagãos, reis e israelitas” (Act 9,15). A sua grande paixão deixara de ser a Lei, e o seu zelo irrepreensível, outrora farisaico, gravitava agora, e com ainda mais vigor, em torno do Christós [tradução grega de Messias].


A ressurreição do Cristo-Messias-Ungido era o núcleo do seu Kerygma, a Boa Novidade que trazia a libertação e a vitória sobre o homem velho, aquele que conhecera tão bem e o mesmo que tombara à entrada de Damasco. A vinda do homem novo, mais tarde proclamado por Saulo, não só era inaugurada na vida do Mestre de Nazaré, mas também adquiria carne e autoridade na sua própria vida. Por isso não tinha qualquer pudor em anunciar que “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20). O amor vencera-o, e agora era preciso derramá-lo a todos os que ainda não o conheciam…


“Quem nos afastará do amor de Cristo: tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada?(…)Em todas essas circunstâncias, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou. Estou convencido de que nem a morte, nem a vida, nem anjos nem potestades, nem presente nem futuro, nem poderes, nem altura nem profundidade, nem criatura alguma nos poderá separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus Senhor nosso.”

Rom 8, 36-39

terça-feira, 21 de outubro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS [3]




- O Caminho de Damasco -


Todo o cuidado era pouco naqueles tempos difíceis…




A qualquer momento as portas da casa onde se encontravam podiam ser derrubadas e começariam as ameaças, prisões, a ira das multidões, e quem sabe até a morte… a comunidade de Jerusalém já testemunhara a fúria do Sinédrio contra Estevão, e outros irmãos. Conheciam muito bem a proximidade que os 72 membros do Concelho mantinham com as autoridades romanas, a poderosa influência que exerciam sobre o povo, e sobretudo já tinham ouvido falar daquele nome terrível que liderava as fileiras dos executores, nome sussurrado na boca dos mais temerários: “Saulo, o fariseu”.

Porém, ainda que assustados, estavam muito longe de desesperarem…

Os doze e outros discípulos tinham sido preparados pelo Mestre de Nazaré desde o princípio. Quantas vezes e de quantos modos já tinham testemunhado o seu desassombro e ousadia? Experimentaram os seus numerosos confrontos com as castas dos mais poderosos e a perícia com que desmontara todas as suas manhas. Viam-no como o “homem sem-medo” que subira até Jerusalém, curando e libertando uma multidão de gente a ponto de desafiar a podridão escamoteada do Templo e a prática injusta da Lei. E finalmente, como não poderiam esquecer a experiência pascal? A derradeira confirmação de que o Mestre era um Vivente, vitorioso sobre tudo e todos quantos o desafiaram?! O mesmo que comera e bebera com eles tinha sido erguido dos mortos, e nesse impulso de exaltação, elevara-os do mais profundo abismo da decepção, da angústia e do desamparo.


Aqueles discípulos, acompanhantes dos primeiros passos do Mestre, tinham sido provados no melhor e no pior de tudo o que implicava ser testemunha de um ressuscitado, saboreando agora o triunfo de uma Vida totalmente entregue pela causa do Reino! Não havia força que os vergasse, ameaça que os atemorizasse, nem prisão alguma que os detivesse. Até à morte se fosse necessário…era desta segurança que os restantes irmãos se alimentavam. E com este Espírito os primeiros discípulos animavam e lideravam a comunidade, preparando todos a enfrentarem o pior com ousadia, na confiança que a morte já não lhes poderia tirar nada porque a vida do ressuscitado já fluía entre eles e a vantagem do Reino era mais que garantida!


Esta atitude era agora fortalecida por outra notícia que chegara recentemente: Filipe dava a conhecer à comunidade que os samaritanos haviam acolhido o Euangelion! Naquela situação não será difícil adivinhar o sentimento que invadia todos os discípulos de Jerusalém: com gritos de júbilo davam Graças ao Abba e à presença confirmada do Espírito do ressuscitado. Imediatamente reúnem-se e decidem enviar Pedro e João à Samaria. Os dois viajam até lá e são calorosamente acolhidos por Filipe e os samaritanos. Assim, testemunhando as maravilhas da nova comunidade nascente, os apóstolos impõem-lhes as mãos e transmitem-lhes o Espírito Santo como sinal de comunhão e de bênção. A chama criadora que animara os profetas e reis, a mesmo que permanecera em Jesus, era agora visível e operante nos samaritanos. Pelos laços do Espírito aqueles pagãos entravam assim na longa linhagem do Povo de Israel, o resto fiel de discípulos do Nazareno e irmãos da comunidade de Jerusalém.


Entretanto Saulo não se contentava com o decorrer dos acontecimentos. Para ele não havia um minuto a perder. A seita judaica dos nazarenos não podia continuar a expandir-se, e desta vez era necessário levar o poder do Sinédrio para além dos muros de Jerusalém. Sentia a necessidade de se investir de toda a autoridade da cidade santa, na esperança de colaborar com os sinédrios locais das outras cidades da diáspora. Se esse plano fosse avante, havia uma hipótese de outros seguirem-lhe o exemplo e a iniciativa, e talvez finalmente os nazarenos fossem erradicados de vez…



Apresenta-se então diante de Caifás e “solicita-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de que se encontrasse homens e mulheres que fossem desta Via, os trouxesse algemados para Jerusalém” (Act 9,1-3). O sumo-sacerdote naturalmente não lhe nega nada. Saulo era um fervoroso fariseu, homem culto e esclarecido na Lei. Como cidadão romano de Tarso, tinha a vantagem de falar o grego e seria assim a arma ideal nas mãos do Sinédrio para atingir o coração da nova seita no estrangeiro.


Sem demora, Saulo sai velozmente a galope da cidade com uma comitiva de companheiros. Porém, estando a caminho e já próximo de Damasco, algo de inesperado acontece. Algo que não “estava nos planos”. Não sabemos bem como foi, ou quais as circunstâncias que provocaram aquele evento. Não sabemos sequer por mediação de quem…o que sabemos é que na chegada iminente a Damasco, Saulo é “subitamente envolvido por uma intensa luz “ e “cai por terra”



Caíra “do cavalo”. Caía dos pedestais que o tinham elevado como fiel servidor do Senhor de Israel; caía abaixo de todas as seguranças e certezas que faziam dele um fariseu; “caía por terra” para se enfrentar numa última batalha, no solo rasteiro e poeirento das arenas onde os profetas se gladiavam com Deus. O Ungido de Yahvé entrara na sua vida sem convite, por pura gratuidade e com todo o seu poder salvador. Da queda, Saulo saia gravemente ferido no orgulho, no zelo nacionalista, e despido de todos os motivos que o tinham levado a encetar aquela cruzada sanguinária. Pela primeira vez sentia-se inseguro e derrotado diante de alguém. E aí caído, no mais íntimo de si, Saulo encontrava-se “face-a-face” com o ressuscitado, reconhecendo nele alguém mais forte do que a Lei! Assim, num misto de agonia e encanto irresistível escuta:
“Saulo, Saulo, porque me persegues?”




O jovem fariseu perante aquela voz dá-se por vencido, rende-se totalmente, reconhecendo nela o poder e a realeza de Yahvé. Em toda a sua vida jamais encontrara um adversário à altura… aquela voz só podia ser do Messias, porque só O Messias podia detê-lo e atirá-lo “por terra” daquele jeito! Só mesmo o poder daquele Vivente podia despi-lo de toda a vida que levara e devolvê-la a seguir para um novo propósito, um novo caminho, um novo homem…


Saulo "o fariseu" morria assim para renascer; para ser suscitado do novo pelo mesmo Nazareno que perseguira

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS [2]



- Saulo -


Enquanto a semente do Reino do ressuscitado rebentava em cada vez mais povoações e lugares longínquos, em Jerusalém o Sinédrio recrutava e movia todos os recursos e gente para desferir o golpe fatal sobre os nazarenos da cidade. Nessa vaga participavam não só sacerdotes, levitas e saduceus, como também gente piedosa do povo de sentimentos nacionalistas, nomeadamente os fariseus. Entre eles destacava-se Saulo. Vemo-lo presente na lapidação de Estevão a segurar as capas dos agressores e aprovando aquela morte. Mas afinal quem era aquele jovem?




Saulo, proveniente da província da Cilícia e cidadão de Tarso, era “hebreu, filho de hebreus da tribo de Benjamim” (Fl 3,5). Altivo, temperamental, e de personalidade forte arrogava-se de representar a elite do Povo Eleito, um dos poucos fieis de Yahvé. Desde nascença manifestava o orgulho de ser um israelita autêntico, depositário da Promessa, e fiel cumpridor da Aliança e da Santa Lei. Todo ele se deixava imprimir por estas três colunas da religião dos filhos de Jacob.


Na idade da adolescência ingressa na famosa escola rabínica de Gamaliel (Act 22,3). Ali dedica muitas e longas horas aos pés do mestre, investigando as Escrituras e aprofundando o estudo da Lei a fim de tornar-se num discípulo brilhante e zeloso. O jovem cresce assim como um fariseu piedoso e dos mais escrupulosos, não aceitando o menor contacto com pagãos. Havia que viver como Judeu entre Judeus, separado de toda a idolatria.


Passa a cumprir o rito de orar sempre com um véu, o ”tailith”, um manto de longas filactérias e os “tefilim” enrolados nas mãos para recitar as dezoito bênçãos. Comia somente alimentos “kosher” para evitar qualquer contaminação com comida impura. Cingia-se também do “tzitzit”, um cinto rodeado de franjas, e sinal exterior que exibia um israelita devoto, e irrepreensível cumpridor dos mandamentos da Lei.


Além de tudo isto crê-se que pertencia a uma facção extremista do fariseísmo, um grupo de conservadores das velhas tradições de Israel, e cumpridores das mais insignificantes minúcias rituais. Estávamos diante de um jovem adepto de uma espécie de “nacional-judaísmo”, ou “extrema-direita” judaica.


Imaginem...

Imaginem só um homem destes, a caminhar pelas ruas de Jerusalém, que de súbito dá de caras com a propaganda sobre uma seita de gente que desprezava o Culto e a Lei? Um Jovem que tinha dedicado toda a sua vida à estrita observância da Torah, fiel frequentador da sinagoga, e educado como fariseu reaccionário que seria capaz de dar a vida ou derramar sangue num "piscar de olhos" pela nação e o "deus" que tanto amava! Claramente era um homem a temer, capaz de qualquer coisa, qualquer uma…para defender a fé judaica.


Ouvir falar dos nazarenos despertara-lhe uma fúria que lhe revirava as entranhas. Simplesmente não suportava a notícia da ressurreição de um amigo de prostitutas, publicanos e estrangeiros…aquele Galileu era um “glutão e beberrão”, desrespeitara inúmeras vezes o Sábado, e arrogara-se de perdoar pecados. Tinha desrespeitado a Lei, a Tradição e o Templo. “É um maldito que mereceu a crucifixão! Como Deus podia ressuscitá-lo??” – pensava ele. “E quem é essa gente que o proclama?Não podem ser nossos compatriotas. São antes um bando de traidores da nação!! Yahvé há-de exterminá-los um por um e, como servo fiel, tornar-me-ei no seu instrumento!”


Como atitude tão típica do seu modo de ser, empenha-se totalmente e sem reservas a esta nova missão: alistando-se na vaga hostil aos nazarenos “Saulo devastava a igreja, entrava nas casas, agarrava homens e mulheres e entregava-os á prisão” (Act 8,3), e como se isso não bastasse “respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor” (Act 9,11). Aquele inquisidor fanático mais tarde admitiria:



“Foi o que fiz em Jerusalém, com autoridade recebida dos sumos-sacerdotes, punha na prisão muitos consagrados. E quando condenavam-nos à morte, eu dava o meu voto. Muitas vezes nas sinagogas eu maltratava-os fazendo-os blasfemar; e meu futuro cresceu a ponto de persegui-los em cidades estrangeiras.” (Act 26,10-11)


A perseguição de Saulo estava longe de terminar em Jerusalém. O rasto de destruição que deixava atrás de si iria-se propagar muito mais além. Este homem tinha declarado uma guerra de morte aos discípulos e discípulas do Yeshuah de Nazaré…

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

DOS NAZARENOS AOS CRISTÃOS [1]



- A Expansão -




O caos rebentara em Jerusalém…


Após a morte de Estevão é desencadeada uma perseguição declarada e violenta aos nazarenos (Act 8,1). O Sinédrio estava agora, mais do que nunca, empenhado em provocar uma vaga que os exterminasse de vez. O tempo da “guerra fria” terminara. Os chefes de Jerusalém apercebiam-se pelo discurso de Estevão que havia um ataque directo e explícito à Lei e ao Templo. E pior ainda; ele vinha de judeus provenientes do mundo grego. Os helenistas convertidos eram os mais independentes e incisivos. Por isso a ameaça não se manifestava apenas dentro dos muros da cidade, mas podia alastrar-se rapidamente a todo o judaísmo do Oriente. Era uma questão de dever nacional…


Assim muitos judeus gregos, conterrâneos e amigos de Estevão, fogem da capital para a Judeia e Samaria provocando a disseminação da comunidade dos nazarenos de Jerusalém. Apesar do medo das autoridades, estes fugitivos continuavam a sentir o ardor e o zelo pela Boa Notícia de Jesus. Era impossível silenciá-los! O imenso reconhecimento que possuíam levava-os a sentirem-se como pertença a um mistério de vida maior, e as maravilhas que testemunharam marcara-lhes para sempre…

Havia neles um impulso de gratuidade, uma energia criadora e um sentido de unidade incomparáveis. Por isso mesmo, ainda que dispersos e distantes entre si, comungavam dum só Espírito: a Ruah que os animava enchia-lhes de uma força, uma dynamis para proclamar a ressurreição do Nazareno. Entre aqueles que se dirigiam para a Samaria, contava-se Filipe.


Os samaritanos eram considerados como raça impura, gente que não conhecia a Lei, e por isso desprezados pelos judeus, porém Filipe, um dos sete diakonoi nomeados de Jerusalém, não tinha qualquer pudor em anunciar o Euangelion a estes estrangeiros; a gratuidade que o movia superava os seus preconceitos. Não havia barreiras à acção poderosa e libertadora do Espírito Santo. Filipe espalha o fogo do Euangelion no seio daquela gente abandonada por Israel, e ali funda uma comunidade fecunda a tal ponto que “a cidade transbordava de alegria”. Era primeira vez que a Boa Notícia de Jesus transpunha o judaísmo. E assim o tempo passava e novas comunidades iam florescendo na palestina e mais além.


A acção das autoridades de Jerusalém na prática resultara desastrosa. O seu desígnio de conter os nazarenos pela violência só provocara a sua expansão. Aqui verificava-se a fecundidade do martyrion [que significa “testemunho”] de Estevão! A morte daquele discípulo não era desejada por Deus, tal como a de Jesus. Por isso ela não podia cair num absurdo! Aquela testemunha do ressuscitado não podia morrer em vão, o Deus de Israel não o permitiria; o Abba intervinha poderosamente a partir daquela aparente derrota. Sim, o martírio profético de Estevão era revestido da força do Alto, e provocava uma viragem histórica na emergência do movimento nazareno! A Boa-Nova agora “rebentava à força de bomba”, como eco da ressurreição de Jesus. Rasgava-se uma brecha, iniciava-se um novo capítulo na história da salvação.


O gérmen da Igreja despontava sob o sangue derramado de Estevão, aquele profeta da ressurreição tornava-se profecia… mais tarde, Tertuliano, um Cristão de Cartago do séc III confirma a regra:

“o sangue de mártires é semente de cristãos”

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

NO TEMPO DA SEITA DOS NAZARENOS [6]


- A Testemunha -


A comunidade de Jerusalém continuava a crescer apesar do clima de tensão vivido com as autoridades. Mais do que nunca, era agora necessário dar atenção às diferentes sensibilidades de discípulos cada vez mais numerosos e de origens diversas. A ela aderiam judeus não só provenientes da própria cidade e da palestina, mas outros que vinham do estrangeiro, da chamada diáspora, e que entretanto se tinham instalado em Jerusalém. Falavam a língua grega, e além de receberem a educação e tradição judaicas, tinham assimilado também a cultura helenística.


Discutia-se entre eles que as viúvas de irmãos gregos não recebiam o mesmo cuidado que as dos israelitas natos (Act 6,1). Apesar do problema, a comunidade reúne-se com os apóstolos. Ali não havia hierarquia nem castas privilegiadas. Todos examinavam, dialogavam, reflectiam, e decidiam em comum igualdade segundo a Fila-délfia [traduz-se como “amizade entre irmãos”], uma autêntica fraternidade entre discípulos e discípulas de um Mestre na arte de amar e servir.

Assim nomearam por unanimidade sete irmãos, sete judeus gregos que auxiliassem os doze na diakonia [tradução grega de “serviço”] à comunidade. Seus nomes eram
Estevão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas, e Nicolau.


Estes sete diakonoi [servidores] eram convocados para o serviço da fracção do pão, assegurando a partilha comunitária de bens aos mais desprotegidos, nomeadamente aos órfãos e viúvas. Porém, na prática também dedicavam-se ao anúncio do Euangelion.
Por isso expressavam a mesma diakonia dos doze, a diakonia de Jesus: “Eu vim para servir, não para ser servido”


Estes diáconos não eram instituídos segundo uma “ordem sacra”! Eram escolhidos sobretudo porque todos reconheciam neles a eficácia do Kerygma, o mesmo “selo de qualidade” atestado nos apóstolos e nos outros primeiros discípulos e discípulas de Jesus. Eram nomeados precisamente por serem os mais estimados pela comunidade. Estima que vinha do bem extraordinário que faziam. Por isso, a sua nomeação era sinal de confirmação de que a Ruah já actuava eficazmente neles com as qualidades (karismas) de servidores da Palavra do Mestre Nazareno, e por isso seguidores das suas acções…


Entre eles sobressaía Estevão. Aquele Jovem predilecto, e “menino dos olhos” da comunidade de Jerusalém, anunciava a ressurreição de Jesus com a maior vitalidade, acolhendo, confortando e trazendo a redenção aos abandonados de Jerusalém.
Esses agraciados liam no seu jeito de ser e nos seus actos “grandes milagres e sinais”, à maneira de Jesus.

A alegria e o entusiasmo pelo Yeshu de Nazaré envolviam-no e penetravam nele até às entranhas de tal modo que maravilhava tudo e todos. Estevão cativando assim cada vez mais corações agradecidos, surgia como um dos primeiros frutos maduros dos nazarenos, um fruto abundante do Reino de Deus que se propagava e parecia já ultrapassar todas as barreiras culturais no seio do judaísmo.


De súbito, numa discussão com outros gregos cultos pertencentes à sinagoga, Estevão é assaltado por uma turba de gente furiosa. Um grupo restrito da sinagoga, em conluio com o Concelho da cidade, tinha subornado alguns entre a multidão espalhando boatos de que Estevão blasfemara contra o Templo e a Lei. Era esta a oportunidade tão esperada pelos membros do Sinédrio. Estavam dispostos a fazer dele um exemplo, uma mensagem de ameaça e terror para afugentar os nazarenos.




O jovem comparece num julgamento de juízes tendenciosos, acusado por testemunhas falsas, e condenado ainda antes do caso ser concluído. Iria sofrer as consequências da luta pela liberdade e salvação dos filhos de Israel, nas mesmas condições do seu Mestre Yeshu. O sumo-sacerdote Caifás desafia-o a responder às acusações.


Surprendentemente, Estevão não as nega, mas fundamenta-as! Todo o Concelho sobressalta-se! Colocam as mãos à cabeça. O tiro saíra-lhes pela culatra. Esperavam que ele se humilhasse argumentando uma defesa justa para parecer culpado. Mas aquele homem não só admitia as falsas acusações, como apresentava-as e defendia-as como sua causa.


Com firmeza e cheio do Espírito Santo, cita o próprio Deus, o Abba de Jesus, alto e bom som, pela boca do profeta Isaías: “que templo podereis construir para mim?”. Estevão estava a reduzir em frangalhos toda a tradição sacerdotal de Israel, atribuindo também um novo significado à Lei.
Deus não habitava em templos de “justos”, mas nos corações dos justificados e últimos. Jesus ressuscitado era a pedra angular de um Templo novo que não conhecia fronteiras, que se edificava nos corações dos nazarenos.


Caifás aterrorizado via nele uma face sem medo, uma face que lhe lembrava o Nazareno que havia condenado. O sangue dos poderosos do Sinédrio gelava-lhes nas veias. Aquela cena era assustadoramente familiar. Mas que era isto??? O medo que pretendiam instigar apossara-se deles. O feitiço virava-se contra o feiticeiro…

Estevão não pára! Ardente de zelo pela causa e o Reino de Jesus, denuncia-os como homens de “dura cerviz, incircuncisos de coração e ouvidos”, “resistentes ao Espírito” e “assassinos de profetas”.

Perante aquela defesa escandalosa e subversiva, “eles mordiam-se por dentro e rangiam os dentes contra ele” (Act 7,54). Então dando um grande grito, taparam os ouvidos e lançaram-se com toda a fúria contra Estevão. Arrastam-no pelas ruas de Jerusalém à vista do povo e conduzindo-o para fora dos muros da cidade apedrejam-no violentamente até à morte.




Estevão tinha dado um testemunho verdadeiro e absoluto, não pela sua morte, mas por uma vida entregue até àquela morte, de que Jesus era o Messias ressuscitado e inimigo declarado do Templo e da forma como os poderosos de Jerusalém entendiam a Lei.

Entretanto nos bastidores desta cena terrífica encontrava-se um jovem que tinha segurado as capas daqueles que apredrejaram Estevão. Seu nome era Saulo

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

NO TEMPO DA SEITA DOS NAZARENOS [5]




- A perseguição -



A rede de fraternidade dos nazarenos estava a dar que falar…


Penetrando nos becos escuros e sujos da cidade santa, levantavam os miseráveis do chão, saciavam os famintos, recolhiam os enfermos e tratavam-nos. Entre eles a solidão convertia-se em alegria, o desespero em confiança, e a necessidade em abundância. Quem se encontrava com a comunidade de Jerusalém dava de caras com uma utopia que emergia na história de Israel; como uma pérola preciosa que brilhava à vista de todos, como uma colheita que produzia frutos a centuplicar, ou como um grande banquete há muito esperado…




E assim os apóstolos e discípulos seguiam fielmente os passos, gestos e atitudes do Mestre de Nazaré, procurando cumprir a profecia:

“ O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para dar a boa notícia aos pobres; enviou-me a anunciar a liberdade aos cativos e a visão aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, para proclamar o ano da graça do Senhor (Is 61,1-2)


Este “ano da graça” proclamado por Isaías correspondia ao ano do Jubileu. Celebrado em cada 50 anos, revelava-se como excepcional em toda a nação. Estava prescrita a libertação dos escravos e a restituição de terras aos pobres que as tinham vendido como dívida a senhores ricos. A palavra de ordem durante esse ano era “abrirás a tua mão ao teu irmão”. Este regulamento da lei judaica constituía uma Graça especial de Deus concedida ao povo. Porém criava precedentes económicos e sociais tão insustentáveis, que na prática não chegava a cumprir-se…


Mas os nazarenos estavam a criar as condições para se realizar o inconcebível. Aqueles “fora-da-lei” estavam realmente a edificar um Reino que constituía uma nova realidade, a demonstrar um Deus de Graça incondicional, a fundar um tempo de Jubileu permanente:


“Não havia indigentes entre eles, pois os que possuíam campos ou casas vendiam-nos, levavam o preço da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos. A cada um era repartido segundo sua necessidade” (Act4,35-36)


Entretanto os senhores de Jerusalém entravam em pânico. Não bastava que aquela seita maldita ganhasse a estima de muita gente do povo. Segundo eles, parecia que a identidade da nação estava ameaçada. A Lei não era a prioridade destes nazarenos, e o Templo progressivamente deixava de ganhar relevo na sua comunidade. Receavam assim que deixasse de haver gente a quem cobrar penitências, imolações e dízimos ao Templo. E este constituía o principal centro da economia da cidade…


Perante estes chefes, um desastre parecia iminente e havia que tomar as medidas necessárias para evitá-lo. O que se segue vem-nos relatado no livro dos Actos: cegos pelo zelo mandam agora prender os doze (Act 5,18). Ao retê-los, fazem-no com cuidado para não provocarem a revolta do povo (Act 5,26). O Concelho reúne-se novamente e interrogam-lhes porque tinham violado o seu mandato de não ensinar em nome do Nazareno. A resposta dos apóstolos é incisiva: “vós matastes Jesus, e Deus exaltou-o! E disso somos testemunhas.” (Act5, 30-32)


Perante a teimosia daqueles homens não havia outra solução senão matá-los. Já tinham sido avisados e como reincidentes tinham de ser eliminados. E assim teria sido, não fosse a intervenção de alguém muito importante…



Como membro do Concelho encontrava-se o rabi Gamaliel, “doutor da lei e fariseu respeitado pelo povo”. Era por isso uma figura de peso e manifestava-se como representante duma ala tolerante à seita emergente. Era possível que este rabino, preocupado com a situação do povo, até simpatizasse com os nazarenos. Gamaliel levanta-se e deixa apenas um aviso:

“Agora portanto, aconselho-vos a não vos meterdes com esses homens, mas deixai-os em paz. Pois, se o projecto ou a execução for coisa de homens, há-de fracassar; se é coisa de Deus, não podereis destruí-los, e estareis a lutar contra Deus.” (Act 5,38-39)

A sugestão de Gamaliel não podia ser desprezada pelos restantes membros. O melhor mesmo era soltar os apóstolos por enquanto, e aproveitar uma oportunidade melhor para os liquidar. O Concelho deliberou então açoitá-los, e seguidamente libertou-os. Contudo tinham-se aberto as hostilidades. As autoridades tinham de fazer alguma coisa, e sem demora, antes que fosse demasiado tarde…


quarta-feira, 1 de outubro de 2008

NO TEMPO DA SEITA DOS NAZARENOS [4]

Ooops, desculpem-me a extensão deste post. Mas entusiasmei-me...


- Os Sinais do Reino -






Diz-se que quem é deixado à porta de casa nunca é bem-vindo…foi verdade no tempo de Jesus, continua a ser verdade hoje.


Todos os estrangeiros, maltrapilhos, e impuros residentes, ou que peregrinassem à cidade santa de Jerusalém, estavam expressamente proibidos de entrar no Templo sob pena de morte. Ficavam sempre à porta por não serem dignos de comparecer diante da santidade de Yahvé. No interior do Templo os sacerdotes mantinham Deus “aprisionado” num cubículo a que chamavam o “santo dos santos”, separado do resto de Israel por um véu. Lá somente podia entrar o sumo-sacerdote, e uma vez por ano, para obter D’Ele a benevolência e o Perdão para Israel…


Esta religiosidade, alimentada pela classe sacerdotal era geradora de injustiça, e separava o povo em castas de “puros” e “ímpios”, “abençoados” e “malditos”. Uma religiosidade assim distorcia a imagem de Deus, como uma divindade mesquinha e impiedosa, que procurava vangloriar-se numa vaidade majestática. Este não era o Abba de Jesus, nem dos seus discípulos…


O texto dos Actos diz-nos claramente que Pedro tinha curado um paralítico mesmo à entrada da porta do Templo (Act 3,1-9). E esta linguagem é reveladora duma realidade: “O véu do Templo rasgou-se” (Lc 23,46).
O Deus de Israel andava Livre, á solta pelas ruas e praças de Jerusalém, amando, beijando e abraçando o seu Povo pelas mãos dos” nazarenos”.


Eram estes os Actos dos apóstolos, e discípulos de Jesus… eram estes os sinais que aconteciam a partir da nova “seita”, os mesmos que se revelaram no seu Mestre. O Abba confirmara a missão de Jesus e dos seus enviados! Era a força do Reino, o vigor daquele “grão de mostarda” a despontar à vista de toda a gente…


Se este Euangelion de Jesus ressuscitado fosse mera retórica, ou a afirmação de um dogma, teria morrido ali mesmo, aos pés do Grande Concelho. O anúncio daquele nome, “Yeshuah”, vinha revestido de uma força. O kerygma [traduzido do grego por anúncio] de Jesus era a génese de uma realidade nova. A realidade do Reino, querido e desejado por Deus. Neste anúncio não estava implicado propriamente um “dizer”, mas uma eficácia.
A grande prova disso, é que o kerygma continuou, e não podia ser detido porque manifestava-se antes de mais como um acontecimento salvador!


O dinamismo do Reino inaugurado pelo Nazareno prosseguia, a avançar terreno, transformando o choro e angústia daquela gente em libertação de todas as dinâmicas do mal. Acontecia por isso como cura, saúde, e perdão para aqueles cujo coração despertava para esta Boa Novidade, especialmente aqueles que tanta fome tinham de boas notícias na vida…


Era a estes, as “ovelhas perdidas da Casa de Israel”, a quem o Euangelion era anunciado e se tornava Bom acontecimento. E com o coração agradecido, desbordando em exultação, estes abandonados de Jerusalém aderiam ao novo movimento.
Eis os primeiros, predilectos e predilectas do Mestre Nazareno, que se convertiam nos novos discípulos!


E a comunidade de Jerusalém crescia dia a dia, na alegria e júbilo do reconhecimento do Deus de Israel. Um Deus novo, um Abba revelado na vida e no rosto do Nazareno…Já não haveria mais pranto e solidão às portas do Templo. Deus agora habitava fora dele...


Perante estes eventos que floresciam na cidade santa, os membros do Grande Concelho encontravam-se desnorteados, sem saber muito bem como agir. Ainda que vissem no anúncio de Pedro e João a causa dos sinais messiânicos, olhavam-nos sobretudo como “homens simples e iletrados” (Act 4,18). Porém contra factos não havia argumentos: á luz dos últimos acontecimentos, os “nazarenos” conquistavam a simpatia do povo (Act 4,21). Tomarem uma acção precipitada naquele momento poderia ser arriscado. Além do mais, talvez tudo não passasse de uma onda de entusiasmo…


Por isso os chefes de Jerusalém tomam uma decisão prudente: impõem aos apóstolos a proibição formal de falar e ensinar em nome de Jesus Nazareno. (Act 4,18). E Com esta admoestação libertam-nos, convencidos de lhes ter inspirado o medo suficiente para os travar…