“Aceitar
passivamente um sistema injusto é cooperar com esse sistema […]. A
não-cooperação com o mal é tanto uma obrigação moral como o é cooperar com o
bem”
Martin Luther King, Montgomery, 1956
Desde o final da Segunda Grande Guerra, os
EUA ocupavam um protagonismo mundial, e no intuito de se demarcarem do
comunismo da União Soviética, precisavam de ganhar influência e passar a
mensagem ao mundo de um país plenamente democrático. Assim, no período
pós-guerra foi aberta a possibilidade dos afro-americanos recensearem-se e
poderem votar, e em 1954 o Supremo Tribunal americano decretou o fim da segregação
racial nas escolas públicas, declarando-a inconstitucional.
Porém, a mentalidade não tinha mudado. O
racismo e a segregação continuavam tão presentes como no século passado, e eram
sobretudo mais frequentes nos Estados do Sul. Na prática, estava tudo na mesma.
Martin Luther King, ao lado do ministro Ralph
Abernathy, ao chegar à congregação da Avenida Dexter incentivou cada membro a
recensear-se e filiar-se no NAACP (Associação Nacional para o desenvolvimento
de pessoas de côr), associação à qual King recentemente pertencia e prestava
serviço.
Naquele tempo, a segregação fazia sentir-se
de muitos modos em todos os estados americanos, mas no caso de Montgomery a
opressão racista era pior nos transportes públicos. Os afro-americanos muitas
vezes, pagando bilhete, eram logo a seguir expulsos dos autocarros quando
andavam lotados. Os lugares da frente pintados de branco reservavam-se aos
brancos. Nenhum negro podia lá sentar-se, ainda que fossem vazios. Os restantes
(em minoria) pintados de negro eram os únicos disponíveis, a não ser que
houvesse um branco no autocarro de pé – nesse caso o negro era forçado a
ceder-lhe o lugar. Muitos afro-americanos eram insultados, por vezes espancados,
durante essas viagens pois havia motoristas e trauseuntes que gostavam de
exibir o seu ódio racial. A polícia e a Câmara nada faziam: era “a
normalidade”.
Certo dia, uma senhora afro-americana, Rosa
Parks, resolveu desafiar o sistema. Porque se recusara a ceder lugar a um
branco, permaneceu sentada até ser detida pela polícia local. No dia seguinte a
notícia espalhou-se pela comunidade negra e a indignação rebentou.
Distribuíam-se milhares de panfletos a encorajar os afro-americanos a
caminharem a pé e boicotarem as viagens de autocarro. Entretanto, uma litigação
já tinha sido entregue ao tribunal.
Porém, todos temiam a supremacia racista. Foi
aí que apelaram a ajuda do ministro Martin. Tinham-no escolhido por ser
moderado e culto, mas ao mesmo tempo ousado, e confiavam na sua diplomacia. Ao
formarem o MIA (Associação para o Progresso de Montgomery) nomearam Martin
Luther King como líder e cabeça de cartaz para levar as reivindicações da
comunidade negra à empresa de autocarros e às entidades públicas da cidade.
Aquele caso inflamara Martin até á flor da
pele. Então numa noite, a Associação juntara uma multidão para incentivar a
comunidade a um boicote generalizado. Contavam com Martin para um discurso, e
Rosa sentara-se a seu lado. Nessa noite,
Martin Luther King insuflou esperança e um sentido de dignidade à assembleia
como nunca antes visto. Fora como uma lufada de ar fresco numa comunidade
deprimida por anos e anos de humilhações.
Passo a transcrever o discurso:
“Sabem,
meus amigos, chega uma altura, chega uma altura em que as pessoas ficam
cansadas – cansadas de serem segregadas e humilhadas, cansadas de serem pisadas
pelos pés de ferro da opressão.
Chega
uma altura, meus amigos, em que as pessoas ficam cansadas de serem lançadas no
abismo da humilhação, onde experimentam a tristeza de um enervante desespero.
(…)
Não temos outra alternativa senão
protestar.
Durante muitos anos temos mostrado uma espantosa paciência. Por vezes demos aos
nossos irmãos brancos a sensação de que gostávamos da maneira como éramos
tratados. Mas viemos aqui esta noite
para nos livrarmos dessa paciência que nos torna pacientes com tudo menos a
liberdade e a justiça.
A grande glória da democracia americana é o direito de protestar por aquilo que está certo.”
[Nessa altura a multidão levanta-se, e muitos
gritam-lhe: “continua a falar”. Criava-se uma expectativa no ar, e após uma
pausa Martin prosseguiu:]
“Se
estamos errados então o Supremo Tribunal desta nação está errado!
Se
estamos errados então Deus Todo-Poderoso está errado!
Se
estamos errados, então Jesus de Nazaré não passava de um sonhador utópico e
nunca desceu à terra!
Se
estamos errados então a justiça é uma mentira!
E nós estamos determinados, aqui em
Montgomery, a trabalhar e a lutar até que a justiça escorra como uma torrente
de água e a retidão como um ribeiro poderoso!”
[Palmas, as vigas do teto abanam. Levantando
os dois braços Martin continua:]
“Se
protestarem com coragem e todavia com dignidade e amor cristão, quando os livros
de História forem escritos em futuras gerações, os historiadores terão de parar
e dizer: ‘Existiu uma raça de gente, gente negra, de cabelo anelado como lã e
tez negra, de gente que teve a coragem moral de defender os seus direitos. E
desse modo injetaram um novo significado e uma nova dignidade nas veias da
civilização”
A partir daquela noite a comunidade negra
ganhou um ânimo e uma união como raramente se tinha visto. Em Dezembro de 1956
é marcado um encontro entre o MIA chefiado por King e os membros da comissão da
cidade. King delineou três exigências à cidade e empresa de autocarros: a
contratação de motoristas afro-americanos, lugares para os afro-americanos
desde da parte de trás até à frente do autocarro, sem reservas a raças; nenhum
negro seria obrigado a ceder lugar.
A empresa de autocarros rejeitou a proposta,
exigindo à MIA que recuasse. King, determinado e inflexível disse que não
abdicariam dessas exigências pois eram conformes à dignidade dos
afro-americanos.
Então, durante um penoso e longo ano, o braço
de ferro manteve-se firme entre a Câmara de Montgomery, a empresa de autocarros
e a comunidade negra, representada por King. Martin não parava de organizar
marchas de protesto, assembleias onde constantemente apelava à resistência e perseverança.
Não era nada fácil. Os afro-americanos durante quase um ano, tinham de se
deslocar kilómetros a pé, organizavam um sistema de partilha voluntária de
carros e táxis, e ninguém apanhava autocarros. Em retaliação, os polícias da
Câmara faziam operações stop aos carros de boleia e multavam-nos por coisas
insignificantes. Os patrões castigavam e até despediam os seus funcionários de
cor quando chegavam atrasados ao trabalho. Mas King mantinha os afro-americanos
unidos, alimentava-lhes esperança e determinação.
King incentivou que nas
Igrejas voluntários demonstrassem técnicas de não-violência baseadas nas
técnicas de Ghandi. Martin dizia: “trata aqueles que te desprezam como
entidades sagradas” e lembrava que havia um objetivo maior por detrás deste
boicote, pois acrescentava: “o objetivo é a reconciliação; o objetivo é
a redenção; o objetivo é a criação da comunidade dos bem-amados”; “continuaremos a protestar com o mesmo
espírito de não-violência e de resistência passiva, usando a arma do amor”.
A uma dada altura a polícia
dispersava os manifestantes e mandava prender aqueles que participavam nas
marchas. Martin Luther King que as comandava na linha da frente era preso
juntamente com os seus “irmãos”. Recebia telefonemas anónimos e ameaças de morte, mas
nada o fazia parar. Sentia no seu íntimo o apelo de Cristo, que estaria sempre
com ele, que lutasse sempre pela justiça e a verdade.
Montgomery
já andava na boca de toda a América. Tinha-se convertido num enorme movimento
cívico organizado e não-violento que nenhuma opressão do mundo podia parar. Na
altura, um livreiro branco da cidade dedicou um artigo publicado no jornal
local:
“É
difícil imaginar uma alma tão morta, uma visão tão cega e mesquinha a ponto de
não ser tocada pela admiração da
tranquila dignidade, disciplina e dedicação com as quais os negros têm dirigido
o seu boicote. A causa deles e a sua conduta têm-me enchido de grande
simpatia, orgulho, humildade e inveja. Invejo
a sua unidade, o seu bom humor, a sua força moral e a sua disponibilidade para
sofrerem por grandes princípios cristãos e democráticos”
Passados meses de provação heroica, a cidade
começava a rebentar pelas costuras por causa do boicote: cada vez mais donas de
casa apresentavam queixas à Câmara porque as suas criadas negras não apareciam
para fazer limpezas ou cozinhar, vendo-se obrigadas a dar-lhes boleia; as lojas
da baixa da cidade acumulavam perdas, e a empresa de autocarros já não
suportava uma perda de mais de 2500 dólares por dia; os membros do Ku Klux Klan
já não assustavam negros e quando apareciam para aterrorizar caiam no ridículo
de serem completamente desprezados por um grupo organizado de gente de cabeça
erguida e pacífica.
Finalmente,
apesar de um atentado à bomba à residência da família King, e tantas outras
perseguições generalizadas, a Câmara e a empresa de autocarros não tiveram mais
nenhuma saída senão ceder às condições do MIA. Tinha sido
estabelecido um marco histórico, comparável à pacífica revolta do sal de Gandhi
na índia. Montgomery já não era a mesma, e brevemente a América também não…