terça-feira, 24 de setembro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [4] - A CORAGEM DA NÃO-VIOLÊNCIA EM TEMPOS VIOLENTOS


 

A comunidade negra de Montgomery, o MIA, e todos os afro-americanos dos EUA celebravam o fim da segregação racial nos autocarros, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal de Justiça americano. Naquele tempo, apesar das convicções racistas de muitos políticos, pelo menos estes acatavam e respeitavam a Constituição.

Nessa altura Martin respirava de alívio, e começava a ser famoso por ter conduzido um movimento de pessoas a uma revolta pacífica e ordeira. Estava provado que as técnicas de não-violência gandhianas surtiam efeito. Mas isso não impedia que os inimigos dos Direitos Cívicos deixassem de exercer a sua influência e violência. Bem pelo contrário. Para eles era imperativo iniciar uma cruzada, recorrendo a todos os meios possíveis, para travar a ascensão do movimento de King e de outras associações. A sua arma era o uso da força e da violência, de forma a criar um clima de medo generalizado, para manter a submissão e impedir o progresso da consciência cívica da nação.

Contudo, foi nesses ataques violentos que Martin Luther King revelou encarnar a verdadeira força da não-violência. A 30 de Janeiro de 1956, Martin discursava numa Igreja para encorajar o boicote de Montgomery, até que alguém o avisa sobre a sua casa atacada à bomba. Martin, ao chegar a casa, encontra-a ainda a arder sob escombros, e uma multidão crescente de pessoas furiosas, armadas e prontas para descarregarem a sua raiva sobre a polícia, os bombeiros e sobretudo o presidente da câmara e o chefe da polícia da cidade.
Depois de se tranquilizar, após saber que a sua esposa e filhos escaparam ilesos ao atentado, Martin subiu ao alpendre da sua casa em ruínas e diz: “Está tudo bem! Aquele que vive da espada perecerá pela espada. O meu desejo é que ameis os vossos inimigos. Sede bons para eles. Amai-os e mostrai-lhes que os amais”.
(…) O que estamos a fazer é justo. E Deus está connosco. Ide para vossas casas com esta fé calorosa e com esta radiosa certeza. Com amor nos vossos corações…”.

De súbito a multidão dispersou. De início, uma turba perigosa e enfurecida, agora regressava a casa cantando o espiritual negro “Amazing Grace”. Mais tarde um polícia branco da cidade, e que tinha estado naquela noite a enfrentar a multidão, comentaria: “se não fosse aquele pregador preto teríamos todos morrido”.

Noutra ocasião, após o boicote de Montgomery, Martin fundara oficialmente o seu movimento: o SCLC (Conferência de Liderança Cristã Sulista). Não se podia perder tempo. Contra alguns dos seus conselheiros mais próximos que apelavam à “prudência” e “paciência”, Martin afirmava que os afro-americanos já tinham esperado tempo demais pela sua liberdade e igualdade de oportunidades.

Por isso era preciso aproveitar a oportunidade dada pelo Supremo Tribunal de Justiça e avançar com novos protestos à escala nacional. Desta vez, proclamava a “Cruzada pela Cidadania”. Desejava forçar as instituições a cumprir a lei do pós-guerra que permitia o recenseamento eleitoral de afro-americanos. Para tal definiu como objetivo duplicar o número de eleitores afro-americanos do Sul até às eleições de 1960.

Dizia: “Dêem-nos o voto e nós encheremos as assembleias legislativas com homens de boa vontade. (…) Dêem-nos o voto e nós, tranquila e não violentamente, sem rancor ou amargura cumpriremos a decisão do Supremo Tribunal de 17 de Maio de 1954 (…) O relógio do destino está a esgotar-se. Temos de agir agora, antes que seja demasiado tarde”.


Certo dia em Harlem, enquanto assinava autógrafos na recente edição “Caminhar para a Liberdade” do seu relato sobre o boicote de Montgomery, uma mulher negra, Izola Curry, aproximou-se dele sentado e perguntou-lhe: “Você é Martin Luther King? Luther King, ando há cinco anos atrás de ti”, e enquanto falava enterrou-lhe no peito uma faca afiada de abrir cartas, perfurando-o a rasar a artéria aorta. Martin correu sério risco de vida, e depois de uma longa operação, recuperou no hospital de Harlem. Coretta, sua mulher, acompanhava-o todo o tempo, e King, tendo-se informado a respeito da vida enfadada e da loucura de Izola, disse à esposa: “Coretta, essa mulher precisa de ajuda. Ela não é responsável pela violência. Não faças nada contra ela, não a processes, garante que seja tratada.” E assim aconteceu. Por respeito ao desejo de King, Izola não foi condenada e recebeu posteriormente os melhores cuidados médicos num hospital de especializado na reabilitação de pessoas alienadas.


Entretanto, Bayard Rustin, um ativista comunista, tornou-se amigo próximo de Martin Luther King. Era um adepto incondicional da não-violência e tinha trabalhado com o Partido de Gandhi na Índia, com um longo historial de detenções pelas marchas de protesto que organizou desde os anos 30 contra a segregação racial e as desigualdades sociais na América.
Rustin, de ideologia comunista estava proibido pelos conselheiros e membros do SCLC a associar-se publicamente a King, pois isso podia destruir-lhe a reputação. Contudo, secretamente, Martin e Rustin partilhavam uma estreita ligação. E assim Martin adquiriu um conhecimento profundo sobre as estratégias do movimento de Gandhi, e de muitas táticas de desobediência civil e não-cooperação pacíficas para desarmar os opressores.

Martin  diria mais tarde:

“O movimento foi desde o início guiado por uma filosofia. Um princípio (…) designado de muitos modos: resistência não-violenta, não cooperação, resistência passiva. Foi o Sermão da Montanha, e não qualquer doutrina de resistência passiva que começou por inspirar os Negros de Montgomery (…).
Porém com o passar do tempo, a inspiração de Mahatma Gandhi começou a exercer a sua influência. Para mim, tornou-se claro desde cedo que a doutrina cristã do amor, posta em prática pelo método da não-violência de Gandhi, era uma das armas mais poderosas de que o Negro podia dispor na sua luta pela liberdade.(…)
Cristo dava o espírito e motivação, enquanto Gandhi contribuía com o método.”


Em homenagem a Gandhi, e rendido de admiração pelo líder indiano, mais tarde em Fevereiro de 1959 Martin Luther King viajaria à Índia num encontro com o primeiro ministro Nehru. Graças a ele, ganharia novo fôlego pelo movimento dos Direitos Cívicos.





Porém, a ligação de Martin a Rustin custou-lhe caro, convertendo-o num alvo de investigação do FBI, nessa altura liderada pelo perigoso e esquizofrénico J. Edgar Hoover, obcecado pelo moralismo e perseguidor implacável à “ameaça comunista”. A partir dessa altura, Martin Luther King estava a ganhar inimigos poderosos…

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [3] – O GRITO DE LIBERDADE EM MONTGOMERY



“Aceitar passivamente um sistema injusto é cooperar com esse sistema […]. A não-cooperação com o mal é tanto uma obrigação moral como o é cooperar com o bem”
Martin Luther King, Montgomery, 1956




Desde o final da Segunda Grande Guerra, os EUA ocupavam um protagonismo mundial, e no intuito de se demarcarem do comunismo da União Soviética, precisavam de ganhar influência e passar a mensagem ao mundo de um país plenamente democrático. Assim, no período pós-guerra foi aberta a possibilidade dos afro-americanos recensearem-se e poderem votar, e em 1954 o Supremo Tribunal americano decretou o fim da segregação racial nas escolas públicas, declarando-a inconstitucional.

Porém, a mentalidade não tinha mudado. O racismo e a segregação continuavam tão presentes como no século passado, e eram sobretudo mais frequentes nos Estados do Sul. Na prática, estava tudo na mesma.

Martin Luther King, ao lado do ministro Ralph Abernathy, ao chegar à congregação da Avenida Dexter incentivou cada membro a recensear-se e filiar-se no NAACP (Associação Nacional para o desenvolvimento de pessoas de côr), associação à qual King recentemente pertencia e prestava serviço.

Naquele tempo, a segregação fazia sentir-se de muitos modos em todos os estados americanos, mas no caso de Montgomery a opressão racista era pior nos transportes públicos. Os afro-americanos muitas vezes, pagando bilhete, eram logo a seguir expulsos dos autocarros quando andavam lotados. Os lugares da frente pintados de branco reservavam-se aos brancos. Nenhum negro podia lá sentar-se, ainda que fossem vazios. Os restantes (em minoria) pintados de negro eram os únicos disponíveis, a não ser que houvesse um branco no autocarro de pé – nesse caso o negro era forçado a ceder-lhe o lugar. Muitos afro-americanos eram insultados, por vezes espancados, durante essas viagens pois havia motoristas e trauseuntes que gostavam de exibir o seu ódio racial. A polícia e a Câmara nada faziam: era “a normalidade”.

Certo dia, uma senhora afro-americana, Rosa Parks, resolveu desafiar o sistema. Porque se recusara a ceder lugar a um branco, permaneceu sentada até ser detida pela polícia local. No dia seguinte a notícia espalhou-se pela comunidade negra e a indignação rebentou. Distribuíam-se milhares de panfletos a encorajar os afro-americanos a caminharem a pé e boicotarem as viagens de autocarro. Entretanto, uma litigação já tinha sido entregue ao tribunal.

Porém, todos temiam a supremacia racista. Foi aí que apelaram a ajuda do ministro Martin. Tinham-no escolhido por ser moderado e culto, mas ao mesmo tempo ousado, e confiavam na sua diplomacia. Ao formarem o MIA (Associação para o Progresso de Montgomery) nomearam Martin Luther King como líder e cabeça de cartaz para levar as reivindicações da comunidade negra à empresa de autocarros e às entidades públicas da cidade.

Aquele caso inflamara Martin até á flor da pele. Então numa noite, a Associação juntara uma multidão para incentivar a comunidade a um boicote generalizado. Contavam com Martin para um discurso, e Rosa sentara-se a seu lado. Nessa noite, Martin Luther King insuflou esperança e um sentido de dignidade à assembleia como nunca antes visto. Fora como uma lufada de ar fresco numa comunidade deprimida por anos e anos de humilhações.
Passo a transcrever o discurso:

“Sabem, meus amigos, chega uma altura, chega uma altura em que as pessoas ficam cansadas – cansadas de serem segregadas e humilhadas, cansadas de serem pisadas pelos pés de ferro da opressão.
Chega uma altura, meus amigos, em que as pessoas ficam cansadas de serem lançadas no abismo da humilhação, onde experimentam a tristeza de um enervante desespero. (…)
Não temos outra alternativa senão protestar. Durante muitos anos temos mostrado uma espantosa paciência. Por vezes demos aos nossos irmãos brancos a sensação de que gostávamos da maneira como éramos tratados. Mas viemos aqui esta noite para nos livrarmos dessa paciência que nos torna pacientes com tudo menos a liberdade e a justiça.
A grande glória da democracia americana é o direito de protestar por aquilo que está certo.”
[Nessa altura a multidão levanta-se, e muitos gritam-lhe: “continua a falar”. Criava-se uma expectativa no ar, e após uma pausa Martin prosseguiu:]

“Se estamos errados então o Supremo Tribunal desta nação está errado!
Se estamos errados então Deus Todo-Poderoso está errado!
Se estamos errados, então Jesus de Nazaré não passava de um sonhador utópico e nunca desceu à terra!
Se estamos errados então a justiça é uma mentira!
E nós estamos determinados, aqui em Montgomery, a trabalhar e a lutar até que a justiça escorra como uma torrente de água e a retidão como um ribeiro poderoso!”

[Palmas, as vigas do teto abanam. Levantando os dois braços Martin continua:]

“Se protestarem com coragem e todavia com dignidade e amor cristão, quando os livros de História forem escritos em futuras gerações, os historiadores terão de parar e dizer: ‘Existiu uma raça de gente, gente negra, de cabelo anelado como lã e tez negra, de gente que teve a coragem moral de defender os seus direitos. E desse modo injetaram um novo significado e uma nova dignidade nas veias da civilização”

A partir daquela noite a comunidade negra ganhou um ânimo e uma união como raramente se tinha visto. Em Dezembro de 1956 é marcado um encontro entre o MIA chefiado por King e os membros da comissão da cidade. King delineou três exigências à cidade e empresa de autocarros: a contratação de motoristas afro-americanos, lugares para os afro-americanos desde da parte de trás até à frente do autocarro, sem reservas a raças; nenhum negro seria obrigado a ceder lugar.
A empresa de autocarros rejeitou a proposta, exigindo à MIA que recuasse. King, determinado e inflexível disse que não abdicariam dessas exigências pois eram conformes à dignidade dos afro-americanos.

Então, durante um penoso e longo ano, o braço de ferro manteve-se firme entre a Câmara de Montgomery, a empresa de autocarros e a comunidade negra, representada por King. Martin não parava de organizar marchas de protesto, assembleias onde constantemente apelava à resistência e perseverança. Não era nada fácil. Os afro-americanos durante quase um ano, tinham de se deslocar kilómetros a pé, organizavam um sistema de partilha voluntária de carros e táxis, e ninguém apanhava autocarros. Em retaliação, os polícias da Câmara faziam operações stop aos carros de boleia e multavam-nos por coisas insignificantes. Os patrões castigavam e até despediam os seus funcionários de cor quando chegavam atrasados ao trabalho. Mas King mantinha os afro-americanos unidos, alimentava-lhes esperança e determinação.

King incentivou que nas Igrejas voluntários demonstrassem técnicas de não-violência baseadas nas técnicas de Ghandi. Martin dizia: “trata aqueles que te desprezam como entidades sagradas” e lembrava que havia um objetivo maior por detrás deste boicote, pois acrescentava: o objetivo é a reconciliação; o objetivo é a redenção; o objetivo é a criação da comunidade dos bem-amados”; “continuaremos a protestar com o mesmo espírito de não-violência e de resistência passiva, usando a arma do amor”.

A uma dada altura a polícia dispersava os manifestantes e mandava prender aqueles que participavam nas marchas. Martin Luther King que as comandava na linha da frente era preso juntamente com os seus “irmãos”. Recebia telefonemas anónimos e ameaças de morte, mas nada o fazia parar. Sentia no seu íntimo o apelo de Cristo, que estaria sempre com ele, que lutasse sempre pela justiça e a verdade.

Montgomery já andava na boca de toda a América. Tinha-se convertido num enorme movimento cívico organizado e não-violento que nenhuma opressão do mundo podia parar. Na altura, um livreiro branco da cidade dedicou um artigo publicado no jornal local:

“É difícil imaginar uma alma tão morta, uma visão tão cega e mesquinha a ponto de não ser tocada pela admiração da tranquila dignidade, disciplina e dedicação com as quais os negros têm dirigido o seu boicote. A causa deles e a sua conduta têm-me enchido de grande simpatia, orgulho, humildade e inveja. Invejo a sua unidade, o seu bom humor, a sua força moral e a sua disponibilidade para sofrerem por grandes princípios cristãos e democráticos”

Passados meses de provação heroica, a cidade começava a rebentar pelas costuras por causa do boicote: cada vez mais donas de casa apresentavam queixas à Câmara porque as suas criadas negras não apareciam para fazer limpezas ou cozinhar, vendo-se obrigadas a dar-lhes boleia; as lojas da baixa da cidade acumulavam perdas, e a empresa de autocarros já não suportava uma perda de mais de 2500 dólares por dia; os membros do Ku Klux Klan já não assustavam negros e quando apareciam para aterrorizar caiam no ridículo de serem completamente desprezados por um grupo organizado de gente de cabeça erguida e pacífica.


Finalmente, apesar de um atentado à bomba à residência da família King, e tantas outras perseguições generalizadas, a Câmara e a empresa de autocarros não tiveram mais nenhuma saída senão ceder às condições do MIA. Tinha sido estabelecido um marco histórico, comparável à pacífica revolta do sal de Gandhi na índia. Montgomery já não era a mesma, e brevemente a América também não…

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [2] - O Evangelho Social de Martin





Em 1944, Mike ingressa na Faculdade de Morehouse com 15 anos. No princípio não se distinguia nos estudos. Preferia as festas e as farras com os amigos. Vaidoso, gostava de exibir bons fatos, e até lhe chamavam “Tweed” por causa disso. Contudo, mais tarde, após terminar um ciclo de estudos com média fraca, o jovem Mike ingressa num curso de Teologia sob a tutela de um professor que defendia o compromisso social. Aquilo fascinara-o, e acabou por obter a nota máxima.




Apesar de tudo, e irritando o conservadorismo do pai, Mike não abdicava das suas festas universitárias, dançarino nato de jitterbug, galã, fumador e jogador de cartas. Queria libertar-se do autoritarismo do pai King, e criticava a sua conceção rígida do lar e da religião. Por um lado admirava a sua frontalidade nas questões raciais, mas por outro lado, como adolescente repudiava cada vez mais a autocracia paterna.



A pouco e pouco, e à medida que ia aprofundando os estudos, Mike apercebe-se que a fé era muito mais do que “emotividade” e “gritos de “Aleluia” que ouvira na comunidade negra de Ebenezer. Encantava-se cada vez mais pelo professor Benjamim Mays que criticava abertamente as leis injustas do sistema Jim Crow (leis raciais) e pregava o advento do Evangelho social – um movimento que surgira no séc. XIX e defendia uma ética prática do evangelho na luta contra a desigualdade, a pobreza, o crime, o trabalho infantil, e na formação de associações sindicais.


Entretanto prossegue os estudos em Direito com especial interesse por Sociologia. Nessa altura, e em confronto com a fé batista e rigorosa do pai, chocou a todos na aula de catecismo negando a ressurreição física de Jesus. Lamentava “ir à Igreja”, pois irritava-lhe que as pessoas não pensassem e seguissem os seus pastores cegamente sem espírito crítico. Pior ainda, e para desepero do pai King, fizera troça da doutrina do pecado original e afirmava que a virgindade de Maria era apenas metafórica.



Por outro lado, os seus estudos de teologia, direito e sociologia suscitavam-lhe um interesse e sensibilidade cada vez maiores pelas questões sociais. Vai ainda mais longe e frequenta pequenos cursos de Filosofia em Harvard e fascina-se pelo personalismo.



Entretanto, a partir dos 18 anos decidira seguir as pisadas do pai e do avô, mas com uma diferença fundamental. Não seria um pastor “milagreiro” ou “sobrenatural”. Aspirava a tornar-se num ministro “racional” com – dizia ele – “o impulso interior para servir a humanidade”. Não desejava uma Igreja que fugisse da realidade, mas que a fé fosse a força para enfrentar os seus reais problemas. Por isso dedicava imensas horas ao estudo bíblico dos profetas, eram os seus autores favoritos. O Cristianismo tinha de dar mais prioridade a erradicar os bairros degradados do que a “salvar almas”.



King absorveu o melhor da teoria social marxista e do pensamento do economista Keynes – que resolvera o dilema da terrível Depressão económica dos anos 30. Finalmente julgou ter encontrado uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo: era o “seu” Evangelho Social. E pretendia dar-lhe vida através das suas capacidades oratórias oriundas dos sermões de tradição negra que tocavam até ao mais íntimo do coração e da imaginação.



Queria tornar-se no catalisador dos anseios mais profundos do povo negro da América, rumo a um novo horizonte de sociedade.


Mais tarde, conclui o doutoramento em Filosofia, e contra a vontade do pai, Michael King rejeita ser ministro da Igreja de Ebenezer de Atlanta, aceitando antes o convite da comunidade da avenida Dexter em Montgomery. Recém-casado com uma cantora estudante Coretta, o Doutor Michael é investido como o mais jovem pastor do estado do Alabama: o reverendo Martin Luther King, que cedo iria dar que falar…

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Memória do Profeta Martin Luther King [1] – as origens.



Neste Verão tive o privilégio de ler a biografia de Martin Luther King. Faz precisamente 50 anos desde Agosto, que Martin proclamou o seu famoso discurso "I have a dream" (eu tenho um sonho). Ao ler sobre a sua vida e os seus discursos, descobri que o tempo dele não é assim tão diferente do nosso: um tempo de "crise", conturbado, difícil, dramático. E sobretudo o que me admira neste homem foi, em primeiro lugar, a forma como defendeu os direitos cívicos de uma forma não-violenta.

Por outro lado, a maneira não desistente com que enfrentou todas as contrariedades, fracassos e poderes instituídos na época, e que eram poderosíssimos. Outra coisa que me suscitou profunda admiração por este homem, foi descobrir que afinal ele não defendeu apenas os interesses de uma etnia ou raça. Ele também se dedicou à causa universal da paz, um forte opositor à guerra do vietname , e sobretudo nos últimos anos da sua vida, empenhou-se numa luta contra a pobreza e exclusão social.

Para mim, sem dúvida este homem foi Profeta. Profeta incómodo, defensor da Justiça, do direito e dos mais frágeis. Um homem profundamente inspirado pelo Espírito que se tornou "Evangelho" encarnado em pleno século XX.


Para mim, Martin Luther King nunca foi tão atual como hoje. Tinha que o partilhar convosco. Seguem-se uma série de posts. Espero resumir o melhor que sei e aprendi dele.





Nasce a 29 de Janeiro de 1929, em casa, filho da professora Alberta King e do pregador Michael King da Igreja Batista de Ebenezer na cidade de Atlanta. Batizado como Michael King Jr (Júnior), com pouco mais de dez meses, o pequeno Mike cresce numa América repentinamente destroçada pelo crash da Bolsa de Wall Street a 24 de Outubro de 1929, provocada pela especulação financeira desregulada. Seguem-se de imediato as consequências: centenas e centenas de milhares no desemprego, fábricas e empresas a fechar, fome, incompetência e corrupção política… E como é apanágio de todas as “crises”, os mais frágeis são convertidos nas primeiras vítimas.


Dentre elas destacavam-se também os afro-americanos, desde sempre perseguidos e maltratados pela sua cor de pele. Desde 1830 a segregação racial americana expressava-se nas leis Jim Crow, que obrigavam à separação de raças em lugares públicos e privados: bairros, habitações, escolas, hotéis e pensões, jardins, fontanários, casa de banho públicas, restaurantes, cafés, universidades, tribunais, etc. Nesse tempo era comum encontrar à entrada de muitos desses lugares as inscrições: “reservado a brancos”, “proibido a entrada de negros” ou “pessoas de cor”.


Mas não era o pior. No Sul dos EUA, a maioria dos americanos brancos alimentava uma cultura de segregação, por vezes até militante, contra os afro-americanos e outras pessoas de côr. Nalguns casos – e não raros  chegavam-lhes a ser inflingidos crimes e barbaridades horríveis por grupos de linchamento: torturas, mutilações, enforcamento, ou imolação onde as vítimas eram regadas em gasolina para logo a seguir serem queimadas vivas em público.


As pessoas de côr, nomeadamente os afro-americanos, não tinham direitos, não podiam votar, e na esmagadora maioria não tinham acesso a condições mínimas de higiene, habitação, cuidados de saúde, ao ensino superior ou a um emprego digno. Por vezes as vozes da “supremacia branca” sulista encorajava a turba a exercer atos de violência para - passo a citar um jornalista da época -: “manter os pretos submissos”.


Afinal a abolição da escravatura americana no séc. XIX, era na prática um embuste, uma ilusão. E foi este o tempo e o ambiente onde cresceu o pequeno Mike. Protegido no ambiente propício duma comunidade negra Batista, com um pai como líder religioso, Mike foi poupado dos horrores da perseguição racista no Sul.


A origem do nome “Martin Luther” veio do pai King. Em 1934 viajou pela Europa e, ao conhecer mais profundamente a vida e obra de Martinho Lutero (Martin Luther),no regresso a Atlanta mudou o seu nome e o do filho para Martin Luther em honra do teólogo protestante. Nessa altura Mike também passou a ser chamado M.L., embora ainda ninguém o tratasse por Martin Luther King Jr. (Júnior).


O pai King ensinava na sua comunidade, e a Mike desde a infância, que todos eram filhos de Deus, e ninguém devia ser privado da sua dignidade. Encorajava os filhos a não frequentar – tanto quanto possível – lugares segregados, pois segundo ele, eram contrários à vontade de Deus e contra a “ordem moral”. Certa ocasião a família King entrou numa sapataria e foram avisados que tinham de sentar-se na secção reservada a negros, lá no fundo da loja. Mas o pai King confrontou o dono da loja dizendo: “Não vejo nenhum problema com estas cadeiras”; ao que o dono retorquiu: “lamento. Mas vão ter de sair daí”. O pai King insistiu: “Ou compramos sapatos aqui sentados, ou não compramos sapatos”. Foram expulsos da loja, mas o pequeno Mike viu o pai com um ar imperturbável e digno dizendo: “Não me interessa quanto tempo terei de viver com este sistema, jamais o aceitarei”.


Entretanto o pequeno Mike foi crescendo neste ambiente, contagiando-se pela paixão da pregação do seu pai. Isso estava-lhe “no sangue”. Provinha duma família de pregadores, e era isso mesmo que tinha sido incutido pela família. Um dia seria o sucessor de seu pai à frente da Igreja de Ebenezer – assim o esperavam o pai e o avô King (também pregador).


Mike gostava de ler, e já na adolescência treinava discursos ao espelho, com os trajeitos e linguagem gestual, entoação, pausas de voz, e outras técnicas passadas de geração em geração, e tão caraterísticas da tradição das Igrejas protestantes e dos espirituais negros.


Inspirado nos conselhos do pai, sempre que podia e de maneira atrevida e subversiva, usava elevadores onde se lia “reservado a brancos” e evitava sempre viajar nos autocarros segregados. Aos 15 anos, participou orgulhoso num concurso público de discursos intitulado “O Negro e a Constituição”. Testemunhos relatam que arrebatou o auditório com a forma como defendeu tão bem a Constituição Americana e o direito dos negros nela consagrada. Isto num tempo, em que não convinha a ninguém defender a Constituição num ponto tão “sensível” ao dito “interesse público” (enfim, coisas  só “desse tempo” não?)



Já muito jovem, Martin Luther King Jr. revelava-se promissor, e com uma personalidade rebelde, por vezes até, irritando o Pai King com a sua irreverência e força de caráter…